Falecido em 6/10, o paulista de Taubaté José Carlos Moreira Alves não gostava de gravar entrevistas. Nem era entusiasta da TV Justiça.
Por quase três décadas judicou no STF, atualmente segundo controversa sustentação oral o ambiente das pessoas mais odiadas da República.
Protagonizou ao lado de outro titã, Sepúlveda Pertence - também recentemente falecido - um dos mais fecundos períodos de debates de nível na jurisdição constitucional no imponente Plenário do Supremo. Não raro discordavam um do outro. Nunca, porém, que se sabe, o fizeram desrespeitando-se mutuamente.
Moreira Alves foi das inteligências mais brilhantes do Direito Civil (chegou a ser catedrático da USP com pouco mais de 30 anos). Era referência de prudência. Já Sepúlveda Pertence (que lia o texto constitucional pelas lentes do "estado social" cujos participantes, sobretudo as minorias, ansiavam por uma Justiça mais proativa para a compensação de desigualdades) se notabilizou no Direito Penal e por sua verve mais humanista, o que também é voz corrente.
O primeiro foi a visão conservadora, preocupada com os reflexos das decisões e eventuais exageros de soluções "inovadoras". O segundo abraçou o olhar do "progressismo jurídico", a quem incomoda o marasmo institucional de não enfrentar determinados temas.
Como escreveu para a revista eletrônica Consultor Jurídico (CONJUR) Rodrigo Kaufmann em interessantíssimo artigo publicado em 24/08/2019: "De um lado (Moreira Alves), o exemplo da cautela, da hesitação com as propostas inventadas de mudança e a certeza de que a revolução por meio do Direito é o pior do que se pode fazer; do outro (Sepúlveda Pertence), a incorporação do sentimento de mudança, da superação dos antigos formatos, da construção de algo consistente para o futuro".
Moreira Alves era um juiz que entendia, por exemplo, ao falar da Súmula 400 do Supremo ("Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário"), que ali "não se faz justiça quando se quer, se faz justiça quando se pode". Referida passagem biográfica é sempre lembrada para entender o personagem que agora pertence à eternidade. E, assim, termos como "prudência", "cautela" e "estabilidade" sobrepujavam outros como "justiça", "direitos" e "princípios". Para o Ministro (de sempre) não era papel do Supremo construir respostas que, se preciso, transpusessem a letra fria das codificações, alcançando o ideal de justiça, que é o de pacificação social.
Já Sepúlveda Pertence pensava o sacerdócio de julgar albergando conceitos como "direitos fundamentais", "justiça social", "princípio de liberdade política" e "redução de desigualdades" no núcleo principal ("main core") da atividade judicante do STF.
Mas então por que motivo, em um texto sobre a trajetória do Ministro Moreira Alves, utilizo tanto da comparação de sua obra intelectual com a de um colega que sustentava convicções tão distintas? Respondo novamente citando Rodrigo Kauffman: "O poder de argumentação e de retórica de ambos brindou o jurisdicionado e os demais ministros com debates elevados e ricos e fatalmente poderiam inspirar livros e trabalhos de dissecação de cada posição. A inteligência e a profundidade de cada opinião basicamente esgotavam as discussões e as reduzia a pontos dogmáticos. Dificilmente, pelo tamanho intelectual dos personagens, era possível construir um ponto mediano ou mesmo uma terceira via de voto".
No Brasil de alma machucada e patriotismo conflagrado dos dias de hoje, figuras dessa dimensão são exemplos que urge resgatar, em defesa, sobretudo, de um amanhã de paz efetiva. Discordar não forja inimigos, nem justifica o ódio. E, em harmonia com isso, exatamente pelo papel de pacificar a conflituosidade, não é desejável ao juiz que se pronuncie fora dos autos. Nisso Moreira Alves foi imbatível. Aliás, não era de homenagens, entendia que o debate de ideias é que fortalecia a Corte e como decano que foi por anos, atuou em prol da qualidade das decisões.
Obrigado Ministro Moreira Alves por sua consequencial existência a serviço do bom debate jurídico, sem estrelismos, a contrapor percepções, nunca desafetos.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado