A democracia não tem descanso. Sofre ameaças permanentes e frequentes agressões reais. A causa é uma contradição de difícil superação: paga o altíssimo preço mais pelas virtudes que abriga do que pelos defeitos que carrega como obra imperfeita da criação humana.
Os fundamentos do ideal democrático podem ser identificados na definição da notável filósofa, autora de obras marcantes, Hannah Arendt (1906-1975) sobre o que vem a ser a Política: “Tem por base a pluralidade de homens e a convivência de diferentes” (O que é política?; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.21).
A sábia concisão de Arendt revela os elementos constitutivos da construção democrática: pluralismo, regras de convivência e solução pacífica dos conflitos.
A judia-alemã, naturalizada norte-americana, tinha pleno conhecimento do que dizia não só porque nos legou obras magistrais, frutos de profunda reflexão, como também por uma experiência vivida em que a democracia foi massacrada pela devastadora beligerância dos totalitarismos.
Sua sobrevivência pessoal à “solução final”, preconizada pelo nazismo como etapa derradeira da extinção dos judeus, equivale à uma narrativa épica; sua existência revelou a fortaleza de uma muher dotada de inabalável empatia e capacidade de enxergar A Condição Humana (título de grande obra) em “ação” integrada à esfera pública, livre e plural.
Sem direitos do homem reconhecidos e protegidos no ambiente fecundo da diversidade, do antagonismo e do diálogo, o espaço da democracia é sufocado pela violência e supremacia do mais forte.
As regras de convivência e as instituições, derivadas do consentimento, separam a barbárie e da civilização; afirmam o governo da lei e as limitações do exercício do poder. Porém, não bastam códigos escritos, a força dos costumes, os imperativos morais ou religiosos, é necessário que a lei seja cumprida e eficaz, pois, quanto maior for a adesão voluntária dos cidadãos aos comandos normativos, mais democrática é uma sociedade.
O momento necessário de confirmação e reiteração do ideal democrático é a paz. Desde os pequenos círculos de convivência à configuração da geopolítica global, caso não haja possibilidade para solução pacífica dos conflitos, a democracia agônica perde continuamente a respiração para o poder dos tiranos e a consagração da estupidez que se chama guerra.
Pois bem, o estrondo das armas e a crueldade terrorista demonstram que a democracia não tem sossego. É o quadro do nosso cotidiano ao refletir as dores
que emitem imagens e cores da tragédia humana. Não surpreende porque, na raiz dos conflitos, se encontra, talvez, a maior virtude das democracias: a tolerância.
O preâmbulo da Carta das Nações Unidas (26/6/1945) prescreve “praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais....”, no entanto, a experiência histórica tem mostrado como é difícil para uma verdadeira democracia, regime tolerante e permeável à opinião pública, lutar contra a intolerância.
Não custa lembrar o Acordo de Munique (28/9/1938), pacto firmado entre as potências europeias que dava à Alemanha nazista os Sudetos e o controle da Checoslováquia desde que fossem a última reivindicação territorial de Hitler. O então Primeiro-Ministro inglês Neville Chamberlain foi recebido em Londres com calorosos aplausos, a exceção de Churchill que proferiu uma de suas célebres e proféticas frases: “Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra e terás a guerra”.
Mais uma vez, o mundo sofre um ódio epidêmico que é a aversão às dessemelhanças. A negação do direito à alteridade. De todos os tipos. Das etnias aos imigrantes. Do racismo ao sexismo. E por aí vai. A questão desafiadora é qual o limite da tolerância? Tolerar o radicalmente intolerável?
É preciso atentar para o fato de que o intolerante não se contenta em recusar sua própria liberdade: quer obrigar todos os outros a renunciarem com ele à liberdade. A espontaneidade humana, mundo aberto, fonte radical da liberdade a que se referia Hannah Arendt, perde espaço para os extremismos a ponto de uma organização terrorista manifestar o objetivo de destruir Israel em permanente e subterrânea (literalmente) declaração de “guerra”.
Melhor dizendo: declaração estatutária de extinção de milhões de pessoas. Não há registro de guerras entres estados democráticos. A reação à ameaça de ampliação das agressões é o legítimo direito de defesa dos judeus e não-judeus que são alvos e escudos, reais e potenciais, da inominável e covarde agressão do Hamas.
Importante lembrar para não esquecer: o terrorismo é um crime contra a humanidade, logo seus fanáticos adeptos são criminosos adestrados para matar disseminando o medo e o horror dos conflitos.
Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco