Então, é Natal, e 2024 está logo ali. Tempo de celebrar a vida e as conquistas. Tempo de aprender, de sacudir as poeiras do que não saiu como esperado e de encarar os desafios futuros. Após os tempos pandêmicos, com o país em um clima de maior normalidade social, econômica e institucional, meus sentimentos ainda são ambíguos. Pensando no que escrever neste balanço de fim de ano, lembrei-me do famoso poema de Ferreira Gullar, que intitula esta coluna, especialmente da passagem: “Uma parte de mim, pesa, pondera: outra parte delira / Uma parte de mim, almoça e janta: outra parte se espanta”. Essas dualidades me levam a refletir sobre alguns temas do atual debate público.
DEMOCRACIA
Uma parte de mim é angústia com a crise da democracia, aqui e no mundo. As tentativas de enfraquecer as instituições, bases da democracia, e os ataques aos Poderes no último “8 de Janeiro”, em Brasília, são claros sinais dessa fadiga democrática e de que é preciso agir para restaurar a lucidez cívica e a crítica racional, que andam inebriadas pela desinformação, intolerância, miopias ideológicas e pelo (talvez) maior dos desafios nesta seara: as redes (anti)sociais.
Outra parte de mim, contudo, celebra a resiliência da democracia e de suas instituições. Ela continua sendo o modelo preferido da maioria dos brasileiros, dizem as pesquisas. A esperança é saber que as vacinas contra a onda autoritária que aflige o mundo não são devaneios tolos. Existem e devem ser aprofundadas. Um estudo recente da VoxDev, com a participação do renomado professor Daron Acemoglu, do MIT, destaca os benefícios fatores que garantem a sustentabilidade das democracias: crescimento econômico, segurança (paz e estabilidade), distribuição de renda, controle da corrupção e políticas públicas que melhorem a vida do cidadão (ver estudo: bit.ly/3TyukEd). Eu acrescentaria o combate à desinformação. Ainda como sinal de resistência de nossa democracia e de maturidade federativa, registre-se a histórica aprovação da reforma tributária, um feito que pode influenciar positivamente as citadas variáveis que sustentam essa forma de governo.
GUERRAS
Uma parte de mim é só tristeza, ao ver o recrudescimento de conflitos pelo mundo, como o da Ucrânia e o do Hamas e Israel. Neste último, o maior dos paradoxos, algo quase inacreditável: o desentendimento acontece justo em terras sagradas para ambos os povos.
Outra parte de mim busca alento em pensadores como Steven Pinker e Yuval Harari, que comprovam que os passos históricos da humanidade vêm, séculos após séculos, no rumo da paz. Oxalá, aconteça o milagre da paz, a treva se transforme em luz e o ar se encha de amor. E não esqueçamos do que um dia “o cabeludo falou”: “Não importam os motivos da guerra, a paz ainda é mais importante que eles”.
MEIO AMBIENTE
Uma parte de mim sente a vertigem da crise climática, pelos indicadores do avanço da temperatura da terra, do uso dos combustíveis fósseis, pelo aumento da desertificação no nordeste brasileiro e das avassaladoras ondas de calor e de chuvas que invadiram nosso país, decorrentes do El Niño.
Outra parte é contentamento, diante dos dados que comprovam, por exemplo, o fim dos lixões em Pernambuco e a diminuição dos desmatamentos na Amazônia. Além dessas iniciativas, de caráter local, foi animador assistir o histórico acordo da última Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP28), em Dubai, assinado por 195 países, que se comprometeram a fazer a transição de combustíveis fósseis até 2050 e a triplicar a capacidade de energia renovável até 2030. Utopias? Precisamos delas para avançar. “Utopia hoje, carne e osso amanhã”, já disse Victor Hugo.
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA)
Uma parte de mim é aflição pela possibilidade da IA causar desemprego, insegurança, pelos algoritmos enviesados, e invasão de privacidade. Outra parte de mim é só empolgação: ela pode trazer mais eficiência, inovação e ajudar na solução de problemas globais como mudanças climáticas, saúde e justiça.
FÉ E AMOR
Uma parte de mim é desolação pelas desigualdades históricas de nosso país, pelas cenas de violências cotidinas, pela exploração da fé, e pelos preconceitos em relação a todos os credos éticos e também com as pessoas que não praticam uma espiritualidade, mas que procuram, na vida, fazer o justo.
Outra parte de mim, em tempos de estabilidade, recorre ao “Deus de Spinoza”, aquele que está, em essência, em nós mesmos, no amanhecer, nas montanhas, nos rios, nos mares, nos olhos de nossos filhos; aquele que nos recomenda respeitar o próximo e não fazer aos outros o que não desejamos para nós. Outra parte de mim, nos tempos de desertos, suplica às raízes cristãs, em que o AMOR é a essência do que há de mais sagrado e resolve tudo, incluindo os dilemas da própria fé.
Volto ao poeta: a arte da vida é “traduzir uma parte na outra parte” e continuar tocando em frente, com esperanças renovadas. Quem sabe à noite, com os sinos pequeninos dobrando e gemendo, pedindo justiça na terra, o “velhinho” traga os melhores presentes, com sabor de futuro: a paz e a felicidade. E o principal: sem esquecer de ninguém.
Que os sinos de Natal anunciem um feliz Ano Novo!
Valdecir Pascoal, Conselheiro do TCE-PE