Em que pese, no plano político, por vezes saia do eixo da racionalidade por abordagens que misturam outros aspectos, não raro equivocados, é imperativo perseverar para um chamamento do feito à razão.
Há poucos dias, a França se tornou o primeiro País a assegurar constitucionalmente o direito ao aborto, galvanizando legalização em vigor há cinco décadas. A medida foi promulgada em pleno 8 de março, Dia Internacional da Mulher, pelo Presidente Mácron. Já nos Estados Unidos, deu-se marcha ré: a Suprema Corte derrubou a decisão "Roe contra Wade", que garantia, desde 1973 e em amplitude nacional, o direito ao aborto até a 28ª semana de gestação, devolvendo aos estados-membros a incumbência de legislar sobre o tema, sendo que metade deles possui inclinações conservadoras. O assunto até virou pauta da campanha presidencial desse ano.
Trata-se, indisputadamente, de uma questão de saúde pública. Claro! Descriminalizar o aborto implica em algo que é básico sob a ótica civilizacional: reconhecer a independência da mulher em relação ao próprio corpo, dando-lhe a escolha de prosseguir, ou não, com uma gravidez indesejada sem se sujeitar às pressões e prejulgamentos do Estado ou da sociedade.
Diante da clandestinidade da prática de procedimentos abortivos, em condições que bem se imagina, é hora de libertar-se dos preconceitos para entender que o foco deve estar voltado ao bem-estar da mulher e à sua saúde, na construção de uma realidade de acolhimento e não de marginalização, principalmente quando se leva em conta que o aborto ilegal provoca uma torrente de problemas tanto físicos (hemorragias, infecções, perfurações de órgãos e infertilidade), quanto mentais e psicológicos (flashbacks de culpa e depressão, o que não incomumente degringola para o suicídio).
Para além disso, é preciso ir em socorro das mulheres sem acesso à informação, que costumam ter medo de procurar amparo médico-hospitalar precisamente em virtude da criminalização do aborto, quando a mentalidade dominante deveria ser a de que a mulher que carece de acompanhamento médico anseia pelo incentivo a buscar ajuda e não por acabar estigmatizada como desequilibrada ou assassina.
É por tudo isso justa a luta pela descriminalização do aborto. O caminho tortuoso da criminalização até o terceiro mês de gestação atinge uma série de direitos fundamentais das mulheres: o direito à autonomia e à liberdade enquanto pessoa humana; direitos sexuais e reprodutivos; o direito à integridade física e psíquica; o direito à igualdade entre os gêneros; mas, sobretudo, a criminalização nega sentido ao princípio da igualdade no que se refere à não discriminação.
De fato, a criminalização vitimiza a mulher pobre, negra, com reduzido grau de escolaridade e sem acesso a recursos suficientes para custear um procedimento seguro de interrupção da gestação indesejada. Ainda mais por isso, a pergunta correta a ser feita não é se você é contra ou a favor o aborto, mas como é que o Estado com suas políticas públicas enfrenta a questão? Ora, se a sociedade considera que as mulheres não devem fazer o abortamento, então por que não se mobiliza para que essas mulheres se sintam orientadas, assistidas e tenham apoio para que decidam não abortar? E que, se resolverem abortar, que o façam com segurança e os devidos cuidados? A cultura do patriarcado precisa deixar de ser o parâmetro. Não cabe ao Poder Público o controle sobre a sexualidade feminina.
O STF está para decidir a temática na ADPF 442, da relatoria da então Ministra Rosa Weber, de cujo voto lançado pouco antes da sua aposentadoria se pinça o trecho que recusa "atribuir à vida não nascida proteção jurídica absoluta, em face da mulher gestante", assentando, ainda, que "a criminalização vulnera os princípios fundamentais do Direito Penal e os direitos das mulheres, enquanto não protege o feto". O caso hoje passou ao sucessor da Ministra na toga, o Ministro Flávio Dino. Percebido, como no preâmbulo, ser esta uma discussão de saúde pública e não outra, oxalá a Corte Suprema brasileira não involua como sua congênere norte-americana e faça história.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado