As desigualdades brasileiras têm muitas dimensões. Uma das mais importantes se situa no mercado de trabalho. Há, na economia como um todo, iniquidades de remuneração vinculadas a níveis educacionais e aos tipos de mercado onde as pessoas exercem suas atividades laborais.
Há os mercados formal e informal de trabalho. No formal, pessoas trabalham no setor privado e no setor público, que detêm regimes muito distintos. Nesses dois últimos existem os mercados geral e primário. Neste último, o primário, o acesso é limitado e se dá por regras especificas. No geral, o acesso é mais liberal e flexível.
No serviço público o acesso se dá, em geral, por concurso, caracterizando-o como um mercado primário com entrada restrita e regulado internamente por regras próprias de promoção, ascensão e aposentadoria.
As carreiras públicas no executivo legislativo, ministério público e judiciário são exemplos deste tipo de mercado, formando verdadeiras corporações que operam com frequência junto às macroestruturas de poder, onde exercem influência e pressão para obter vantagens que as diferenciam em termos de remunerações e benefícios do restante dos trabalhadores.
Recentemente, por iniciativa do Senador Rodrigo Pacheco, Presidente do Senado, aprovou-se na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) que cristaliza na Carta Magna, já emendada mais de cem vezes desde que foi promulgada, uma política salarial que beneficia de forma ampla as castas do serviço público federal e com enorme potencial de ser replicada de forma incontrolável nos estados e municípios.
A proposta é de conceder aumento de 5%, a cada cinco anos, para as principais carreiras de estado. Inicialmente, a proposta limitava-se aos juízes, depois, por emenda, na CCJ ampliou-se para várias categorias, inclusive membros dos tribunais de contas, policiais federais, etc. , em efeito que denomino de casa de espelhos onde cada categoria se projeta na outra quando se trata de conquistar aumentos de salários e outras benesses remuneratórias.
Em momento de crise das contas públicas onde a revisão do arcabouço fiscal está sendo objeto de controvérsia politica e em meio a uma das maiores greves de professores e servidores das universidades federais por reajuste salarial, tal iniciativa não só é despropositada, mas se constitui em verdadeira ofensa aos brasileiros, precisando ser contida por meios políticos incisivos para que não se constitua em fato concreto com implicações financeiras estimadas em cerca de R$ 42 bilhões por ano.
O Brasil tem em torno de 11 milhões de funcionários públicos, constituindo-se em 12,4% dos trabalhadores formais brasileiros. Esse percentual é inferior à média dos países da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 23,5%, mas os gastos com pessoal representam, segundo a pesquisadora Cristiane Schmidt (Revista Conjuntura Econômica Volume 78, Nº 04, Abril de 2024), 13,4% do PIB brasileiro, percentual à frente dos países desenvolvidos (9,9%) e mesmo de países latino-americanos como Colômbia, Chile e México, cujos gastos com funcionários públicos variam de 6,5% a 7%.
Como resultado, temos no país o servidor público com salário médio de R$ 5,6 mil enquanto a média geral de um empregado formal é de R$ 3 mil. A diferença seria ainda maior se contemplarmos o rendimento médio do setor informal.
A proposta em curso no Senado além de elevar ainda mais os gastos com pessoal vai criar na Constituição uma enorme rigidez para eliminá-la futuramente.
Essa iniciativa é mais uma, entre outras semelhantes que ocorreram no Brasil nos últimos anos, que se constitui em manifestações da insensibilidade das elites políticas e das lideranças das corporações do serviço público sobre a profunda desigualdade social e econômica da sociedade brasileira.
Esse tipo de proposta eleva as desigualdades de renda dentro do serviço público com a base constituída por professores, médicos, atendentes, entre outros, que formam o grosso dos funcionários públicos, distanciando-os das elites constituídas por juízes, procuradores, promotores, delegados, etc. Essa por sua vez eleva a desigualdade geral de renda que situa o país entre os mais iníquos do mundo. Não pode, nem deve passar!
Jorge Jatobá, Doutor em Economia, Professor Titular da UFPE, Ex-Secretário da Fazenda de Pernambuco. Atualmente sócio da CEPLAN-Consultoria Econômica e Planejamento