Opinião

Joca vive

Joca tinha atestado veterinário para ficar duas horas e meia em trânsito, nunca as oito excruciantes horas a que foi inacreditavelmente submetido

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Gustavo Henrique de Brito Alves Freire

Publicado em 26/04/2024 às 15:46
Notícia

Não é só razão de profunda tristeza, mas expressão de uma irresponsabilidade sem tamanho, não reparável por dinheiro algum, o fim reservado ao cão golden retriever Joca, de 5 anos, que veio a óbito depois de ser desnecessariamente transportado para Fortaleza, Ceará, ao invés de Sinop, no Mato Grosso, recentemente, no dia 22 último.

Joca tinha atestado veterinário para ficar duas horas e meia em trânsito, nunca as oito excruciantes horas a que foi inacreditavelmente submetido. A malsinada “falha operacional” da empresa aérea causou um trauma emocional enorme.

Quase que de imediato, como é traço distintivo cultural do Brasil, onde pouco se previne, atuando-se sempre depois do estrago feito, as autoridades reagiram anunciando uma investigação, que findará constatando que Joca não morreu, definitivamente, de causas naturais; Joca foi vítima de descaso.

A Câmara dos Deputados, por exemplo, pretende “convidar” o Presidente da companhia aérea em cujas mãos morreu Joca para que compareça a uma audiência pública para dar explicações. A pergunta que se faz: somente agora os inquilinos do poder se deram conta de que o transporte de animais no País é falho e que os animais não são bagagens, mas membros das famílias que os adotam, companheiros, protetores e não muletas emocionais. Seu transporte, sem dúvida alguma, deve necessariamente ocorrer em condições dignas.

Também apelidados de “pets”, eles tornam a vida menos sozinha. Ajudam a lidar com problemas complexos como a depressão e a ansiedade. No Brasil, os animais de estimação habitam quase 150 milhões de lares segundo dados do IBGE. Antes e acima de qualquer coisa, um pet faz bem à saúde mental.

Cientificamente já foi comprovado que, em contato com os bichos, o ser humano ativa o sistema límbico, responsável pelas emoções mais instintivas, o que favorece a liberação de endorfinas, gerando tranquilidade e bem-estar.

Desde setembro de 2020, com a Lei 14.064, constitui crime maltratar animais silvestres, domesticados, domésticos, nativos ou exóticos no País. A sanção prevista, porém, é quase simbólica, senão mesmo risível: no máximo rende um ano de detenção e multa, podendo ser aumentada em até um terço, se o animal vier a óbito. Por sua vez, o quantitativo de animais abandonados (o que é outra violência) não cessa de aumentar por esses lados: são quase 190 mil, conforme números do Instituto Pet Brasil, divulgados em 2021. A judiação imposta a essas inocentes criaturas vai de lesões físicas à desnutrição à obesidade, confinamento em espaços sem higiene, entre outras perversidades.

Joca se foi em pleno mês dedicado à prevenção contra a crueldade aos animais. A dor de seu tutor é a dor de milhões. A iniciativa dessa data, sem a menor conotação comercial, diferentemente de outras que ninguém esquece, partiu da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade a Animais (ASPCA).

Quem ignora a senciência, capacidade de ter empatia por aqueles ao seu redor, deve achar o Abril Laranja uma chatice. Pura falta do que fazer. Coitados.

Os maus-tratos não se atêm à violência física; envolvem, também, manter os o animal sem abrigo ou em lugar em condições inadequadas ao seu porte e espécie, ou que lhe ocasione desconforto físico ou mental; desprover alimentação e hidratação adequadas; submeter o animal a tarefas exaustivas; captura e venda de animais silvestres e exóticos; abuso sexual (zoofilia); abandono; castigos físicos e mentais, ainda que para aprendizagem ou adestramento; sem esquecer o sacrifício de cães e gatos como método de controle de dinâmica populacional.

Sequer o horror da ditadura, aqui personificada no Estado Novo de Vargas, impediu que a Justiça deferisse o Habeas Corpus de Harry Berger, impetrado pelo lendário Sobral Pinto, baseado, exatamente, no artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais, de 1934. Sobral escreveu na impetração: “Nenhum animal pode ser posto em uma situação que não esteja de acordo com sua natureza. Um cavalo não pode ficar dentro de uma baia a vida inteira, tem que sair, galopar. O homem também não pode ficar numa situação dessas”.

Encerro com Anatole France: “Antes de ter amado um animal, parte da alma humana permanece desacordada”. Joca vive

Gustavo Henrique de Brito Alves Freire, advogado

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