O anteprojeto de Código Civil
Imaginem minhas filhas fuçando meu whats app, socorro! Vou logo fazer um testamento interditando qualquer acesso póstumo
Tem gente no mundo jurídico e político querendo o nome ou o busto no mesmo panteão de Clóvis Bevilácqua e Ricardo Fiúza (não estranhem as diferenças de estatura jurídica, é só história). Não encontro outra explicação para tanto açodamento em alteração deveras substancial na vida do cidadão. Mal completamos o aniversário de vinte anos do atual - o anterior resistiu oitenta e seis anos -, lá vem a mudança. E não é mudança qualquer, é de essência, em grande parte mudando por mudar, para pior.
E com proclamações infantis. Tome-se, a exemplo, o art. 1º do projeto, que configura uma personalidade internacional a todas as pessoas naturais em território nacional. O art. 1º do atual Código é límpido: toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Simples, completo, confere ao refugiado em solo nacional o manto jurídico de que precisa. E a que vem a personalidade internacional? Inútil.
Entre as proclamações, na crista da onda, a beatífica alocução de que a afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e de proteção aos animais que compõem o entorno sociofamiliar da pessoa. Não sabendo muito mais por onde ir, o Código, deixando a vantagem de ser Código e de resolver a situação, proclama que a proteção jurídica dos animais virá em lei especial. Nota-se muito claramente que se procura aqui conquistar a simpatia da população, ultimamente desenvolvendo - ninguém sabe onde lhe dói a solidão - grande amor pelos animais de estimação. É o legislador indo além da normatização, para fazer homenagens; agradece o bilionário comércio de pet shops.
Para além dos vocábulos horrorosos utilizados no texto em algumas situações (ambulação em lugar de locomoção é um; velamento para a supervisão do Ministério Público sobre as fundações é outro), o texto do anteprojeto troca expressões utilizadas no Código atual por outras que distorcem completamente o sentido: ao tratar das manifestações de vontade que dão azo ao ato jurídico válido, no Código atual tratadas como declarações de vontade, o anteprojeto fala em exteriorização da vontade. Vai ter muita gente afirmando que o meneio de cabeça na hora do fechamento do contrato foi uma negativa.
Outro absurdo é a nulificação do contrato que violar a função social. Hoje, o ato é nulo quando lhe falta agente capaz, objeto lícito e forma prescrita em lei, fácil de entender e, melhor, objetivo. Imagine o leitor quantas discussões virão a propósito de que determinado contrato não cumpre sua função social.
Na parte do direito digital, o anteprojeto é pródigo, e não digo que a regulamentação da vida digital não seja necessária, ao contrário, é imprescindível, mas teria ficado melhor em lei especial que convivesse de forma mais sistêmica com o marco civil da internet. Do jeito que veio, acho que vai complicar mais. Uma só: o anteprojeto cria a herança digital, de modo que herdeiros possam acessar toda a vida digital do de cujus (defunto), salvo se houver expressa declaração dele em vida. Imaginem minhas filhas fuçando meu whats app, socorro! Vou logo fazer um testamento interditando qualquer acesso póstumo.
Isso que dá fazer as coisas açodadas, sem dar tempo ao tempo. Não é hora de mexer no Código, temos que deixar a vida rolar mais, a sociedade evoluir mais. Pois, como afirma Machado de Assis, este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mas ao tempo dá Deus habeas corpus.
João Humberto Martorelli, advogado