OPINIÃO

Dulcíssima

Dulce Campos continuará a existir como um dos pilares intelectuais que fundaram a instituição que frequentamos todos os dias. E eu espero ser perdoado pela farsa que protagonizei!

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FLÁVIO BRAYNER

Publicado em 28/05/2024 às 0:00 | Atualizado em 28/05/2024 às 14:37
Notícia

Em uma certa manhã de Dezembro de 2016, recebi um estranho telefonema de uma Senhora, de voz já debilitada e revelando uma idade avançada, que me fazia um inusitado pedido: ela queria o título de Professora Emérita da UFPE! Era a professora Dulce Campos recentemente falecida aos 95 anos de idade e que, acreditava, não sei por que razão, que eu detinha o poder acadêmico de indicar nomes para títulos honorários! Confesso que fiquei tão desconcertado que escrevi ao Conselho Departamental do Centro de Educação (UFPE) sugerindo a apreciação de seu pleito e apresentando um longo arrazoado. Não contive minha decepção quando o pedido foi negado, em função das novas exigências para uma tal titulação.
Não me dei por vencido. Conversei com seu filho, meu amigo de infância Alírio Dantas, e organizamos uma “encenação”: em 2018, o Colégio de Aplicação completava 60 anos de sua fundação, e Dona Dulce –que fora minha diretora entre 1969 e 1972- era a única fundadora ainda viva. Falei com o Reitor Anísio Brasileiro que, na formidável solenidade que ocorreu no Teatro Guararapes (completamente lotado!), prestou uma merecidíssima homenagem àquela professora..., que acreditou que estava recebendo o Título que tanto desejava! Não me arrependi em nenhum momento de tê-la, de certa forma, enganado com aquela encenação em que ela fora aplaudida de pé por mais de 2000 pessoas!
Dulce Campos iniciou o magistério em 1948 na rede estadual de ensino, foi Professora Titular de Sociologia e Filosofia da Educação do antigo Instituto de Educação de Pernambuco, (importante e precursor centro de formação de professores do Estado) e no ensino superior iniciou suas atividades em 1960 já como professora catedrática da Escola de Belas Artes (posteriormente absorvida pelo Centro de Educação); foi Assistente da Faculdade de Filosofia de Pernambuco e Professora Adjunta do Centro de Educação (1968-1978). No final dos anos 50, juntamente com Maria Antônia MacDowell (ex- catedrática de Didática Geral daquele Centro e falecida em 2012), concebeu e fundou o Ginásio de Aplicação (hoje Colégio) de onde foi diretora entre os anos de 1969 e 1972, onde inaugurou o primeiro Serviço de Orientação Educacional (SOE) do estado. Junto com o Professor Zaldo Rocha, escreveu diversos e pioneiros trabalhos na área da Psicanálise e ajudou a introduzir esta matéria nos cursos de Psicologia e Pedagogia após a reforma universitária de 1968. Pouco antes, participara com alguns artigos da Revista Estudos Universitários, dirigida à época por Paulo Freire, com quem, aliás, fundou o Instituto Capibaribe (1955), ainda em funcionamento no bairro das Graças. Durante o primeiro governo de Miguel Arraes (1962-64) dirigiu o Plano Trienal de Educação, juntamente com a Professora Anita Paes Barreto, introduzindo pioneiramente a pré-escola na rede pública estadual.
No Centro de Educação criou a disciplina de Dinâmica de Grupo, ainda hoje presente em nossa formação pedagógica, e junto com a professora Maria José Baltar, realizou pesquisas sobre a preparação didática do professor do ensino superior. Foi membro de diversas instituições nacionais e internacionais de Psicanálise, onde apresentou, seguidamente, trabalhos na área, representado, ora a UFPE ora a Sociedade Psicanalítica do Recife, da qual era membro fundador.
Conhecida e reconhecida professora, com bacharelados em Psicologia, Pedagogia e Filosofia pela UFPE e UNICAP, com pós-graduações realizadas nos Estados Unidos e na PUC-RIO, Dulce Campos foi agraciada com as medalhas da Ordem do Mérito dos Guararapes (maior honraria concedida pelo Governo de Pernambuco), da Comenda do Colégio de Aplicação (UFPE) e da Medalha Paulo Freire concedida pelo Conselho Estadual de Educação.
Eis, em brevíssimas linhas, um currículo que honraria qualquer Universidade!
* * *
Logo depois daquela solenidade, Dona Dulce voltou a me telefonar, dessa vez para cobrar a Medalha de Professora Emérita (que não existe!). Gelei! Liguei novamente pra Alírioo pedindo socorro: -“ Alírio, manda fazer uma medalha aí pelo amor de Deus!”.
O título de Professor Emérito é bem mais do que uma honraria concedida a professores que desejam reconhecimento institucional – muitas vezes movidos por injustificáveis vaidades: é a comenda que a Universidade oferece aos seus professores aposentados para que, de certa forma eles permaneçam entre nós, com a intenção de que não esqueçamos o fato de que somos “herdeiros” de uma tradição acadêmica e cujo esquecimento, movido pela vertiginosa aceleração dos afazeres universitários, termina por nos condenar ao desinteresse ou desconhecimento do que foi feito antes de nós e de quem o fez. Professores como Dulce Campos abriram continentes de investigação temática, inauguraram experiências educativas muito bem sucedidas, fundaram instituições educativas renomadas e introduziram práticas acadêmicas das quais ainda hoje nós somos usuários, mesmo sem ter a menor ideia de como ou quem começou.
Mesmo que tenha se tratado de um tributo encenado, Dulce Campos continuará a existir como um dos pilares intelectuais que fundaram a instituição que frequentamos todos os dias. E eu espero ser perdoado pela farsa que protagonizei!

Para Dona Dulce (In Memoriam)

Flávio Brayner , professor da UFRPE e da UFPE

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