Eu não posso fraquejar!
Busco na meditação, nos bons cafés e na compreensão de amigos e parentes a certeza de que é melhor não me oferecerem uma dose.

O calendário em cima da mesa registrava 29 de maio de 1994. O relógio tic-tac na parede mostrava 17h26 da tarde, de um domingo frio, como é frio o crepúsculo do céu de Brasília, por esta época do ano. Na redação do jornal, onde eu trabalhava, os plantonistas só esperavam o grito: “fechado”. Era o sinal de que a empreitada domingueira estava concluída.
Enquanto aguardava essa mensagem, achei por bem descer mais uma vez os quatro andares do edifício, localizado no centro da capital federal. Fui direto ao quiosque, clandestinamente instalado na porta do prédio, pedi uma dose dupla de vodka, justificando que o frio tinha chegado. Eu sempre tinha uma justificativa. Para cada gole que pedia os argumentos já estavam prontos: ora era o frio, ora a motivação das companhias ou a falta delas. Motivos não faltavam.
Foi aí, agarrado na placa de venda prontamente providenciada de um ceramista do interior de Pernambuco com os dizeres: “se for beber, me chame”, que Ivan, já fechando o boteco disse: “campeão”, ele tinha mania de chamar todo mundo de campeão. “É pra não errar o nome”, justificava, “não é por nada, não, mas o amigo já tomou, só hoje, uma garrafa de vodka”. Zombei daquela contabilidade, mas o alerta me tocou forte. “… uma garrafa de vodka” por dia?
Ajustei o fone de ouvido. Paguei a conta do dia, sem sequer olhar o valor total, dei um “play” no CD e escuto aquela voz marcante de Leonard Cohen [1934-2016] "Everybody knows that the dice are loaded”, eu insistia em desconfiar da contagem de Ivan. Parei diante do vidro espelhado do edifício e vi o reflexo de um homem em compasso de espera por uma decisão radical. Ou paro ou paro, pensei!
Subi os 64 degraus no mesmo ritmo com que Leonard Cohen balbuciava cada palavra da poesia de Sharon Robinson: “Everybody knows that it's me or you” [Todo mundo sabe que sou eu ou você]. Escolhi a mim! Fui direto à mesa do chefe, e, sem meias palavras disse: “estou doente, preciso de duas semanas para me tratar. Segure minha vaga que eu volto curado”. Pelo sorriso dele, entendi que meu emprego estava garantido.
Viajei, naquela mesma noite, os 220km que separam Brasília de Alto Paraíso de Goiás. Um aprazível ponto turístico, de muitas cachoeiras e exoterismo por todos os lugares. Numa conhecida clínica de recuperação eu me hospedei, passei por um longo e doloroso processo de desintoxicação a base de plantas medicinais, muito banho de rio e muita meditação.
Voltei ao trabalho sob uma crise constante de abstinência, mas já contava 15 dias sem uma gota de álcool. Nada! Era o começo de uma longa história que dura quase 11 mil dias sem beber. Não é que não sinta vontade. Ao contrário. Diariamente quanto acordo, a primeira vontade que me vem é de tomar uma dose de vodka. Mas dois importantes ensinamentos me marcam até hoje: um deles, o alerta do Ivan, para quem vez ou outra retribuo o “puxão de orelhas” com generosas doses de bons cafés; o outro foi de um médico cardiologista, Oscar Orsellas, que após longos estudos, didaticamente me explicou que algumas pessoas - como eu - não têm um “gatilho” de alerta como que dizendo: ‘está na hora de parar’.
Pessoas como eu não param. Por isso mesmo, não devem beber. Nem sei, até, se eu poderia dar um testemunho: o melhor é procurar ajuda profissional e se conscientizar de que estamos falando de uma doença Busque uma ajuda.
Passei por vários estudos científicos, fui analisado, sofri dois comas de abstinência, ainda hoje sinto calafrios quando vejo um garrafa de vodka na minha frente, mas busco na meditação, nos bons cafés e na compreensão de amigos e parentes a certeza de que é melhor não me oferecerem uma dose.
Eu sei que não ficaria em somente em mais uma dose. Eu não quero voltar àquela festa de São João quando eu tinha sete anos e tomei meu primeiro porre do Costa e Damião. O restante da história já vivi. Eu não posso fraquejar!
Romoaldo de Souza, jornalista correspondente do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação em Brasília, professor universitário e especialista em café