OPINIÃO | Notícia

Projeto de desNORTEamento

Afinal, devemos ainda alimentar a crença numa "humanização" do homem? Ou o retorno do homem será, mesmo, o retorno à barbárie?.....

Por FLÁVIO BRAYNER Publicado em 18/06/2024 às 0:00 | Atualizado em 18/06/2024 às 10:27

Na Conferência que Max Weber pronunciou em 1917, já no final de sua vida, intitulada "Ciência como vocação", ele cunhou o termo "desencantamento do mundo" para caracterizar a Modernidade. A expressão significava uma "desantropomorfização" da Natureza, quer dizer, a ideia de que existiam, ali, forças espirituais (o Espírito da montanha, a Ira do vulcão, a Revolta dos mares..., semelhantes às forças contidas no interior dos homens), fora substituída por um amplo processo de secularização promovido pela ciência e pela técnica: o FIAT ("Faça-se") do Gênesis daria lugar ao NOSCE ("Conhece") da ciência moderna e, assim, a narrativa religiosa que fizera da natureza nossa Mãe e nossa Casa desabou, transformada em objeto de conhecimento, domínio e exploração. A Natureza deixa de ser "dádiva" divina para ser "bem" econômico para que nos sirvamos dela até seu esgotamento final! E para isso precisávamos compreendê-la, quer dizer, conhecer os mecanismo que a regem, suas leis, sua "necessidade" (não há liberdade na Natureza; um vulcão não se "revolta" por causa da depravação humana! Aliás, o terremoto que destruiu Lisboa, em 1755, visto como castigo divino, poupou o bairro das prostitutas: uma prova, digamos, carnal(!), dos "inescrutáveis desígnios de Deus"!).

Mas, assim como a Natureza fora secularizada, a História também o fora: ela deixa de ser o lugar da Providência ou do Destino inexorável para se transformar no lugar em que a Razão se exerce e nos leva, por "astúcias" sucessivas (Hegel), ou por leis necessárias (Marx, Comte), ao reino terrestre da liberdade ou da igualdade! Era o desencantamento da História. Com a falência das chamadas "filosofias da história" (a crença de que a História tinha um "sentido", nas duas acepções do termo - um SIGNIFICADO compreensível e racional e uma DIREÇÃO, voltada para a realização de uma utopia, quando ela apontava para um futuro realizável pela ação política dos homens), parece que, agora, com tal falência, não nos restou outra coisa senão um acerto de contas com o passado: a história como o lugar do ressentimento identitário e da cobrança pelo sofrimento dos ancestrais, a destruição de monumentos, mudança de nomes dos lugares, indenizações, julgamentos simbólicos, desmoralização da cultura europeia, da razão, da ciência, da técnica, do progresso, do sujeito, da liberdade, da consciência, da moral normativa do dever, da pedagogia, da família, da democracia, dos direitos universais, da própria "universalidade" e, finalmente, restando apenas a realização final daquele vaticínio foucaultiano: o Homem como um desenho na areia da praia que uma onda vem e apaga!

Temos a impressão de que, apesar de todo o programa de desmoralização da Modernidade, ainda podemos - desculpem o clichê- "esperançar"! E foi nesse contexto cultural de decadência, que apareceram as chamadas "epistemologias do sul", às quais o professor Boaventura de Souza Santos (Universidade de Coimbra) dedicou um interessante livro. Não discutirei, aqui, a validade de tais críticas, seu alcance "epistemológico", sua envergadura moral, o descentramento conceitual que promove, o deslocamento político que produz, o tipo de adeptos que recruta ou sua institucionalização em centros de pesquisa (a passagem dos "estudos decoloniais" para uma "teoria decolonial").

As críticas às "epistemologias do norte", no entanto, são obrigadas - para se exercerem- a lançar mão do principal recurso intelectual produzido pelo... "Norte": a CRÍTICA! E, assim, o - vamos lá!- Projeto de DesNORTEamento se situa num impasse... epistemológico: confesso, sem constrangimento, que eu acreditarei piamente numa Epistemologia do Sul no dia em que nosso sofrido hemisfério produzir uma ferramenta tão poderosa quanto a CRÍTICA, que não devesse mais nada àquela herança... "nortista"! Meus colegas educadores, aqueles que creem em "consciência crítica" como ferramenta de libertação e transformação social, concordarão que as ideias de libertação e de transformação social -vejam só!-, também vieram daquele famigerado eurocentrismo: as noções de revolução, processo histórico, sujeito de consciência... não veem do "Sul". O problema está em que direção ressemantizá-las. Ademais, a topografia geográfica que define o Norte e o Sul (numa Terra geoide viajando pelo espaço) é uma noção "imperial" europeia! O "Sul" está embaixo? Como assim? Ora, estamos todos "em cima" da Terra, enquanto existir gravidade. Não acho que a Europa esteja "em cima da minha cabeça" (embora ela possa estar "dentro"!), mas vai ver que a Europa ainda acha que o Brasil está "lá em baixo"!

Dessacralizada a Natureza e a História, restou a dessacralização do Homem, com a Teoria da Evolução das Espécies (Darwin), e o mundo burguês produziu aquele que se faz por si mesmo (o "Self made man"), que não tem absolutamente nada a ver com o neo-empreendedor de hoje, essa expressão eloquente da degradação do trabalho e da dignidade. Afinal, devemos ainda alimentar a crença numa "humanização" do homem? Ou os fascismos, as xenofobias, o crime de Estado, a destruição do Outro cultural, as homofobias, os racismos, o ecocídio, a corrupção generalizada, os fundamentalismos religiosos e ideológicos, limpezas éticas, genocídios apoiados pelas "democracias" ocidentais, finalmente mostrarão que o futuro do homem é o retorno do que nunca se foi: a barbárie?

Flávio Brayner, é professor emérito da UFPE e visitante da UFRPE

 

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