Um pombo instigou a nossa reflexão
Obra revela, entre outras facetas, a diferença de "estilo" do humor brasileiro e português. A primeira fala e gargalha em voz alta com estridência

Pelos idos de 2000 vi o filme e li a entrevista concedida pelo cineasta sueco Roy Andersson à volta da película “Um Pombo Pousou num Ramo a Refletir na Existência”. A matéria, salvo erro, foi publicada no “Expresso”. Roy, que começou a produzir filmes na década de 70, só ganhou fama a partir de 2014 quando o longa-metragem foi vitorioso no festival de Veneza com o Leão de Ouro.
A obra revela, entre outras facetas, a diferença de “estilo” do humor brasileiro e português. A primeira fala e gargalha em voz alta com estridência excessiva como se estivesse isolado num bunker. Sorrimos de tudo, até mesmo dos nossos caiporismos. O segundo é introspectivo, perspicaz e quase sempre com sabor de ressaibo e altivez fabricada. O emprego da palavra “estilo” é intencional. Pretende revelar a identificação de Andersson com outros diretores. Fala-se, por exemplo, na afinidade do sueco com o grande ator, produtor, diretor e roteirista Charles Chaplin, acusado de ser um repetidor do gênero que o glorificou nos filmes “O Vagabundo”, “O Garoto”, “O Grande Ditador”, “Tempos Modernos”, “Luzes da Ribalta”. Todavia, Anderson jamais pensou em copiar Carlitos que lentamente retornou ao gênero que o notabilizou.
Pouco conhecido no Brasil, Andersson permaneceu fiel a seu jeito rígido, álgido, frenético e levemente cruel. Numa autoanálise superficial, o diretor assegura que a obra em discussão é integrada por fragmentos da vida em desordem e caos ou, quem sabe, por cilícios de raivosa impotência. E não esconde, na mesma entrevista, que buscou inspiração na obra “Ladrões de Bicicletas de Vitório de Sica. A trama do filme é difícil de compendiar: dois vendedores ambulantes que habitam um albergue lúgubre arriscam-se a negociar artefatos carnavalescos e encendrar a visão do expectador acerca da impermanência da vida e da expectativa da morte.
Nessa dimensão, apresa o mundo caótico formado por experiências que parecem desfilar perante o nosso olhar pasmado. É nesse choque de eventos – alguns excessivamente bizarros - que a confissão subliminar explode: o horror e a desordem que nos rodeiam estão na adjacência entre a elegância e a vulgaridade, o cômico e o trágico, o sorriso e o pranto, o isolamento e a multidão, a fugacidade da vida e a inexorabilidade da morte. Acaba por aceitar que a narrativa do fato pressupõe que o homem arrisque tudo. Salva-se, possivelmente, uma verdade inexorável; a presença inevitável da morte.
Salvador Dali, o artista catalão que pintava os seus quadros como se olhássemos através de espelhos disformes, gostava de repetir uma máxima: “a mão de um pintor só é fiel quando detém a capacidade de corrigir os dados da natureza”. Contudo, diferente de Dali - que se afirmava um paranoico-crítico - Andersson jamais admitiu o uso do cinema com a finalidade de corrigir ou produzir alterações na tragédia humana ou suavizar os caminhos labirínticos da vida. Acreditava, possivelmente, que as imperfeições podem aformosear ou adornar a existência.
A sequência mais cruel do filme é a da máquina infernal onde se enfiam escravos a golpes de chicote. Por essa via o diretor afirma o seu humor excruciante. Embora seja paradoxal a ideia de fazer rir infligindo dor, é nesse aspecto que Andersson, se aproxima de Carlitos quando assegurava que “é saudável rir das coisas mais sinistras ou aterrorizantes da vida, inclusive da morte”. Afinal, para Chaplin todo humor seria indefectivelmente carrasco. Alguns exemplos poderiam ratificar essa lógica. O espaço inicial é de Milei: “Tenho grande admiração pelo Zorro. Ele é um herói anarcocapitalista injustamente demonizado pela mídia.
O segundo é de um cronista fortuito: a PEC nº 10/2023 do quinquênio dos magistrados et caterva, em tramitação no Senado, objetiva oferecer maior dignidade remuneratória aos operadores do Direito. Ela acabará com os supersalários no serviço público. Lula também está presente nesse cenário de humor vermelho-azul, cores da Diana no pastoril. Sucede quando ele acicata a imaginação falando da sexualidade exacerbada na idade provecta ou dirige comentários sobre a alta do dólar: “O povo pobre não compra dólar, compra comida”. Há também a história da ministra Sonia Guajajara. Ao saber que ela estava nos EUA participando do Fórum da ONU sobre questões indígenas, o Presidente reage: “ela é ministra dos Povos Indígenas do Brasil”. Para rematar, temos o comentário do jornalista Cláudio Humberto: “perdão de dívidas como a dos partidos políticos é o novo sonho da classe média”.
Essas menções robustecem a certeza de que estamos a rir sempre - interna ou externamente - contra as pessoas, a favor delas ou mesmo com elas. Sorrir tem a ver com o restolho de liberdade que a sociedade ainda nos oferta ou proporciona. No plano da liberdade, Andersson propõe um itinerário que se desatrela da nossa vontade: a liberdade “condicionada” e determinada pelo institucional e até pelas circunstâncias. Acaba açulando as nossas dúvidas acerca de três indagações: a liberdade existe? A imprensa consegue divulgar a verdade? A metáfora pode ser compreendida pela classe iletrada? A vitória de Maduro decorreu da vontade e dos votos dos venezuelanos?
Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas e ex-docente da Faculdade de Direito de Lisboa.