Tenho a impressão de que a discussão atual sobre as particularidades identitárias (até em Jogos Olímpicos!) terminarão por nos levar a um impasse cultural muito mais grave do que aquele famoso “choque de civilizações”!
Lembro que a cultura ocidental dispôs de duas formas de UNIVERSALISMO transcendente: a ideia de éramos todos filhos de Deus, e a ideia de que todos nós dispomos da Razão (que Descartes chamava de “bom senso”). Tais universalismos eram diretamente alvo de uma forma qualquer de Educação (religiosa ou científica, no caso). O problema, agora – e eu não tenho a resposta!- é saber como trataremos pedagogicamente o particularismo identitário no interior de processos pedagógicos. E para apresentar tão somente a complexidade do tema, dividirei este artigo em duas ou três partes. Eis a primeira!
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Originalmente, a discussão sobre a identidade, ou melhor, sobre um “princípio de identidade” remonta a Aristóteles (“Primeiros Analíticos”) e dizia respeito ao problema do conhecimento, ou seja, partia-se da ideia de que uma coisa (A) tinha que ser igual a ela mesma (A=A), e que não podia ser, ao mesmo tempo, igual a ela e a outra coisa, e que não podia ser ela mesma e seu contrário, ou o conhecimento seria impossível. No entanto, a noção de identidade se tornou um pouco mais complicada que isso, na medida em que deixou de ser apenas um problema do “conhecimento” (epistemologia) e passou a ser algo que define aquilo que nós “somos” (ontologia).
O problema é que tanto a nossa existência, quanto a nossa cultura não são regidas por uma lógica “formal” (A=A) e a confecção de nossa identidade é algo bem mais complexo do que uma simples operação teórica e envolve aquilo que “NÓS SOMOS”, aquilo que “QUEREMOS SER”, aquilo que “OS OUTROS ESPERAM DE MIM”, e aquilo que ‘EU ESPERO QUE OS OUTROS PENSEM DE MIM”.
Vejamos, então, cada um desses aspectos.
AQUILO QUE NÓS SOMOS
Vamos imaginar o fato de que nós temos uma “essência”, ou seja, um núcleo interno que faz com que nós sejamos aquilo que somos e não uma outra coisa e que, além disso, essa essência é única, perene e que nós já nascemos com ela (pode mudar alguma coisa, mas o essencial já estaria ali!). Essa essência seria aquilo que nos diferenciaria de todos os outros seres vivos existentes e conhecíveis, e poderia ser, por exemplo, a RAZÃO: durante muito tempo acreditamos que a melhor definição de nós mesmos era a de “animal racional”. Todos nós seríamos dotados de Razão (que seria, assim, Universal) e mesmo que algumas pessoas ou culturas ou povos ainda não a tivessem desenvolvido completamente (as crianças, os povos primitivos, as mulheres, etc.), esta seria uma ótima tarefa para a educação! Durante muito tempo, o objetivo da educação moderna, dita “racionalista”, foi desenvolver nas crianças a função racional, aquilo que faria delas homens completos e adultos. Como a infância era a época da “não-razão”, o papel da educação seria, então, ir além da infância, deixá-la para trás com a ajuda de um adulto. Nessa perspectiva, aquilo que nós somos não depende inteiramente de nós mesmos, pois já se encontra lá dentro da gente quando nascemos ou depende de pessoas racionais que nos ajudem a seguir o bom caminho em direção ao que devemos ser
AQUILO QUE QUREMOS SER
Todos nós já assistimos a filmes que se passam na época do Antigo Regime (Séc. XVII e XVIII), naquelas cortes europeias onde os homens (nobres) se apresentavam em público estranhamente vestidos, com perucas, fortemente maquiados, falando de uma maneira empolada e seguindo rigorosamente uma coisa chamada “etiqueta”... Isso era o resultado do que dissemos no item anterior: o homem bem formado, aristocrata, educado, racional, virtuoso não devia nunca mostrar, em público, aquilo que ele “era”: suas vontades, seus desejos, apetites, simpatias, etc., vistos como uma coisa de “mau gosto” e contrário à norma cortesã. A maquiagem pesada era uma forma de esconder o próprio rosto, quer dizer, a própria “identidade”, para se apresentar segundo aquilo que os outros esperavam de cada um.
O social, o grupo a que se pertencia, tinha mais força do que a vontade individual, a vontade de ser aquilo que “realmente sou”. Mas com o avanço da sociedade burguesa, começou a ganhar terreno uma figura que tinha sido desprezada: o INDIVÍDUO. A valorização do indivíduo (característica do Moderno) significava uma série de coisas: a possibilidade de manifestar seu ponto de vista pessoal, de criticar a ordem existente (consciência crítica), de poder exercer sua “liberdade” como indivíduo ou como cidadão. A partir de um determinado momento do Ocidente, ao lado da RACIONALIDADE, a ideia de LIBERDADE fará parte da lista que definirá nossa IDENTIDADE HUMANA.
(Voltarei ao tema na próxima semana. Aguardem!)
Flávio Brayner, professor Emérito da UFPE e Visitante da UFRPE