OPINIÃO

Os Supremos: Estados Unidos e Brasil

Politização das cortes supremas, no Brasil e nos Estados Unidos, tem feito as duas instituições enfrentarem crises de legitimidade.....

Cadastrado por

Joaquim Falcão

Publicado em 14/08/2024 às 0:00 | Atualizado em 19/08/2024 às 16:27
Sede da Suprema Corte, Supremo Tribunal Federal, em Brasília - GUSTAVO MORENO/SCO/STF

Analisávamos decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos. Em jantar com os professores da Harvard Law, Terry Fischer e David B. Wilkins. Dezembro de 2000. Lá mesmo em Cambridge, Massachussetts.

De repente: "A nossa Suprema Corte está prejudicando a democracia" disse Fischer, criador do Beckman Center. Prenunciou um mal-estar. Com certa desesperança. Se não foram estas exatas palavras, o sentido foi.

Meses antes, houvera a disputa presidencial George W. Bush versus Al Gore. Acirrada. Quem ganhasse o colégio eleitoral da Flórida seria o presidente. Após a contagem inicial de votos, a margem que separava os dois candidatos naquele colégio eleitoral era de menos de 0,5%.

Laurence Tribe, também professor de Harvard, era o advogado de Gore. Requereu à Suprema Corte recontagem dos votos por máquinas, segundo a legislação eleitoral daquele Estado. Alegou suspeita de erro ou mesmo de fraude. Mas as cédulas dos varios condados eram diferentes. Não seguiam padrão. Ambiente propício a erros e manipulações.

Os Estados Unidos pararam. A democracia parou. Esperava-se decisão da Corte.

Que deu vitória a Bush. O resto é historia... Mas o que espantara Terry Fischer foram as justificativas.

Dada a avaliação da Corte de que o processo de recontagem em andamento provavelmente estava sendo conduzido de maneira inconstitucional, a Corte [em liminar do dia 9 de dezembro de 2000] suspendeu a ordem que direcionava a recontagem para que pudesse ouvir este caso e emitir uma decisão rápida. O dispositivo [legal, do Estado da Flórida,] de contestação [das eleições], como foi mandatado pela Suprema Corte Estadual, não está bem calculado para sustentar a confiança que todos os cidadãos devem ter no resultado das eleições. O Estado [da Flórida] não demonstrou que seus procedimentos incluem as salvaguardas necessárias. (Tradução nossa).

E finalizava:

Nossa consideração está limitada às circunstâncias presentes, pois o problema da proteção igualitária nos processos eleitorais geralmente apresenta muitas complexidades.

Para Fisher, clara decisão política. A Corte decidira por conta de "provável inconstitucionalidade". Que o sistema eleitoral "Não sustenta a confiança que todos os cidadãos devem ter". Decisão "limitada às circunstâncias presentes".

Ou seja, decisão única, pressionada pela pressa, e que não faria jurisprudência. Nunca mais.

Robert Dahl, clássico cientista político, em seu livro "A Constituição norte-americana é democrática ?", já previa erros de modelagem eleitoral na democracia americana. Entre eles, o principal: o voto não é direto. É por colegiados. Cada estado com seus sistemas, seus padrões, suas regras.

O resultado pode ser que a maioria não eleja a presidência, mas sim a minoria. Não deu ou dá outra. Gore teve mais votos do que Bush e perdeu. Hilary teve mais votos do que Trump e perdeu.

Para Fischer, a ponta do iceberg da politização judicial suprema emergia. E avançaria silenciosamente, no decorrer dos anos. Cada vez mais visível. Até hoje. E de várias formas.

Em 2016, Senado de maioria republicana se recusou a decidir sobre Merrick Garland, o indicado por Barack Obama para a vaga de Antonin Scalia na Suprema Corte. Naquela ocasião, Mitch McConnell, líder do Senate Judiciary Committee, fez claro bloqueio. Disse a Obama: "Presidente, o senhor não vai ocupar a vacância da Suprema Corte".

Não ocupou. O bloqueio político da votação por decurso de prazo legal deu certo. Quando assumiu, Trump mudou. Indicou Justices como Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Votados e aceitos.

Em 2022, a Corte já com maioria republicana derruba landmark cases como a histórica decisão de Roe v. Wade, sobre aborto. No mesmo ano, outra decisão de matiz trumpiano amplia o acesso a armas.

Agora em 2024, a Corte confere imunidade para atos oficiais dos presidentes, inclusive para Trump. O Chief Justice John Roberts, conservador indicado por George Bush, em seu voto pela maioria, estabeleceu:

O presidente não goza de imunidade pelos seus atos não oficiais, e nem tudo que o Presidente faz é oficial. O Presidente não está acima da lei. Mas o Congresso não pode criminalizar a condução presidencial das responsabilidades do Executivo sob a Constituição. E o sistema de separação de poderes, desenhado pelos constituintes, sempre demandou um Executivo enérgico e independente. O Presidente não pode, portanto, ser acusado pelo exercício do seu núcleo de poderes constitucionais e ele tem direito a, no mínimo, uma imunidade presuntiva de acusações por todos os seus atos oficiais. Essa imunidade se aplica igualmente a todos os ocupantes do Salão Oval, independente de razões políticas ou partidárias. (Tradução nossa).

A Justice Sonia Sotomayor, indicada por Obama, como relatora do dissenting vote, reagiu. Explicitou a fratura na corte. Um dos mais violentos votos jamais escritos. Grito de alerta.

A decisão de hoje, de garantir a ex-presidentes imunidade penal, remodela a instituição da presidência. Ela zomba do princípio fundacional da nossa Constituição e sistema de Governo de que ninguém está acima da lei. [...] Porque a nossa Constituição não protege um ex-presidente de responder por atos criminosos e de traição, eu divirjo. [...]

A Corte agora confronta uma questão que nunca precisou ser respondida na História da nação: se um ex-presidente goza de imunidade contra persecução criminal federal. A maioria pensa que deveria gozar, então inventa uma imunidade atextual, ahistórica e injustificável para por o Presidente acima da lei. [...] Presuntiva ou absoluta, sob a decisão da maioria, os usos que o presidente faz de seus poderes oficiais para quaisquer fins, mesmo os mais corruptos, são imunes à persecução. (Tradução nossa).

A repercussão foi mundial. Aumenta a discricionariedade, quase arbítrio do presidente para declarar guerra — por exemplo. O Financial Times, Londres, em edital, entendeu que a corte teria derrubado um dos pilares da democracia:

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