O princípio da inocência e a soberania do Tribunal do Júri
A execução provisória da pena, antes de o réu ser considerado culpado, no Brasil, eternamente será uma grave vulneração ao princípio da inocência...
Muitos hão de lembrar da inesquecível e equivocada decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal, em17.02.2016, durante o julgamento do habeas corpus nº 126.292-SP, relatado pelo ex-ministro Teori Zavascki, quando a Corte Suprema, por 7 (sete) votos a 4 (quatro), veio a autorizar o início do cumprimento da pena privativa de liberdade em relação a todos os condenados do país, desde que houvesse uma decisão dos órgãos colegiados do Poder Judiciário. Julgados e mantidas as condenações pelo Tribunal Estadual ou Federal, mesmo estando o réu solto na data do julgamento, a Suprema Carte achou por bem de antecipar o cumprimento da pena, mesmo que daquela decisão ainda houvesse a possibilidade da interposição de recursos por parte da defesa. Em síntese, o Supremo Tribunal Federal, com aquela manifestação judicial, introduzia, efetivamente, a execução provisória da pena, mesmo que o acórdão dos tribunais não houvesse transitado em julgado (quando não cabe mais recursos).
Nesse prisma, condenados por órgãos colegiados, os réus passaram a iniciar o cumprimento da sanção penal, às vezes, imediatamente após o julgamento, num desrespeito imensurável ao princípio constitucional da presunção de inocência, que estabelece que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII, CF/1988). A insegurança jurídica gerada no país, com aquele estranho comportamento adotado pelo STF, em 2 (dois) anos após a trágica decisão, aumentou a população carcerária brasileira em cerca de 25% (vinte e cinco por cento). No Brasil, mesmo que a decisão não tivesse efeito vinculante, posto erigida de um habeas corpus, passou a exigir o cumprimento da pena antecipadamente, mesmo que a Constituição de 1988 afirmasse que, neste caso, tratava-se de um réu inocente, pois somente com uma condenação definitiva o Estado poderia tratá-lo como culpado.
Em 03.02.2020, ao julgar as Ações Declaratórias nºs 43, 44 e 54, relatadas pelo ex-ministro Marco Aurélio, o pleno do STF declarou a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, agora com efeito vinculante, condicionando o início da execução da pena, somente, depois que houvesse o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, quando o condenado passa a ser efetivamente culpado pela sua participação no crime. Como se percebe, o Supremo Tribunal Federal refluiu, nesse diapasão, modificando o seu entendimento firmado em 2016.
Ocorre, porém, que com a aprovação da Lei Federal nº 13.964, de 2019, que entrou em vigor em 23.01.2020, deu-se uma nova redação ao art. 492, I, e, do Código de Processo Penal, reintroduzindo a possibilidade da execução provisória da pena em relação a réus condenados pelo Tribunal do Júri, nas vezes em que a pena seja igual ou superior a 15 (quinze) anos, uma nova tentativa de violação ao princípio constitucional da inocência, que vigora nos países democráticos do mundo inteiro.
Ao apreciar o Recurso Extraordinário nº1235340, em 12.09.2024, manejado pelo Ministério Público de Santa Catarina e relatado pelo ministro Roberto Barroso, o pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos autorizou, em sede de repercussão geral (todos os órgãos do Poder Judiciário são obrigados a cumprir), que o princípio da soberania do Júri deve prevalecer, em confronto com a presunção da inocência, significando, assim, que um réu condenado pelo Tribunal do Júri deve iniciar o cumprimento da pena tão logo seja publicada a decisão condenatória, mesmo sabendo-se que da decisão do Corpo de Jurados caberá sempre o recurso de apelação para os órgãos de 2º grau de jurisdição.
É possível - e isso costumeiramente acontece - que a apelação da defesa, no caso de condenação, seja provida pelo Tribunal, seja reduzindo a pena, seja remetendo o réu a novo julgamento e até anulando o processo penal. Em caso de anulação ou de submissão do acusado a novo julgamento, o réu estará cumprindo uma pena inexistente, possibilitando, nesse caso, a busca de indenização contra o Estado, uma vez que a pena foi executada sem que o réu sequer tivesse sido condenado.
A decisão do STF no Recurso Extraordinário, teve como base o preceito constitucional que assegura ao Tribunal do Júri a soberania dos seus vereditos. Contudo, o STF esqueceu que esta soberania é relativa e diz respeito, somente, à liberdade absoluta que deve nortear as decisões do Corpo de Jurados. Ela não é absoluta, até porque das suas decisões sempre cabem recursos para os Tribunais. A execução provisória da pena, antes de o réu ser considerado culpado, no Brasil, eternamente será uma grave vulneração ao princípio da inocência, que deve sobrepujar, sempre, quaisquer dos demais direitos e garantias constitucionais, com exceção da vida e da liberdade, que aliás foi frontalmente menosprezada pela mais Alta Corte do país.
Adeildo Nunes, juiz de Direito aposentado, professor e coordenador do curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Vale do Pajéu, mestre e doutor em Direito de Execução Penal