OPINIÃO | Notícia

Lula e o "apartheid cordial"

Deve-se ter com a educação e com os livros uma relação antropofágica semelhante ao ultimato da esfinge de Tebas: "decifra-me ou devoto-te".....

Por DAYSE DE VASCONCELOS MAYER Publicado em 20/10/2024 às 0:00 | Atualizado em 20/10/2024 às 6:23

Li, no "Diário de Notícias", um artigo do jornalista português João Almeida Moreira acerca do nosso "apartheid cordial". Salvo interpretação incorreta, o jornalista desejava reverenciar o nosso presidente Lula, esquecido de que estamos num momento de desarmonia política, de desalinho administrativo e de disputas e tramas de poder. Lula tem sido incapaz, até o momento, de construir uma narrativa irretorquível. As viagens ao exterior com a primeira dama deixam manifesto o "joie de vivre".

Diferente é o entendimento do profissional português. Ele afirma que Lula abriu as portas para que as Jéssicas do Brasil (personagem do filme "Que horas ela volta?") pudessem ter as oportunidades que têm no presente. Num cotejo com o passado, recorda as palavras de Danuza Leão em 2022 na "Folha de São Paulo": Ir a Nova Iorque ver as músicas da Broadwey já não é interessante. Um porteiro de edifício poder adquirir, agora, um bilhete aéreo com prestações de R$50,00 e isso não tem nenhum sentido. Também não tem graça enfrentar 12 horas de avião para chegar a Paris, entrar nas perfumarias que dão 40% de desconto, com vendedoras falando português.... Com o olhar no passado próximo, lembra a figura do ex-ministro da economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, quando sugeriu aos pobres trocar a Disneylândia pelas praias do Nordeste ou por Cachoeiro de Itapemirim onde Roberto Carlos nasceu. Tudo agora parece diferente porque o super-homem retornou: Lula. Foi ele - afirma Almeida Moreira - que "teve a ideia revolucionária de inclusão dos pobres no orçamento do País" (caso do Bolsa-Família).

Com a finalidade de realizar uma crítica social à estratificação no Brasil, o jornalista instiga o leitor a efetivar o confronto entre o Nordeste pobre e o Sudeste rico. É o momento em que é possível recordar os tempos do "pau-de arara" (referência pejorativa ao êxodo de nordestinos para o sul do país, nomeadamente para o estado de São Paulo, em transportes improvisados). O texto de Moreira principia com uma entrevista da diretora e roteirista do filme "Que horas ela volta?" - Anna Muylaert. No longa, Val, a protagonista, abandona o Nordeste com o objetivo de melhorar de vida e proporcionar à filha um futuro mais digno. Ao longo do tempo ela irá descobrir que a cultura ainda feudal brasileira é algo pétreo. Por isso, embora persuadida de que fazia parte da família onde trabalhava, jamais sentou na mesa de refeição com os patrões e continuou a dormir no aposento dos fundos da casa: minúsculo, apertado, quente e com cheiro de bolor.

A empregada doméstica, foi o símbolo escolhido pela diretora para denunciar os códigos sociais das nossas elites. Tais símbolos não sofreram substancial alteração no século 21. Continuaram refletindo a "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freire. Almeida não discorre sobre o significado social da filha da empregada, embora ela represente a componente insubmissa, revolucionária e insurgente do enredo. E tudo isso graças ao papel de vanguarda exercido pela educação que recebeu. Por isso Jéssica faz uso da piscina e não se sujeita a dormir num cubículo indigno. E tudo se complica quando a moça é aprovada no vestibular e o filho da patroa é desaprovado.

Embora o espaço jornalístico inviabilize verticalidades, Almeida Moreira não faz nenhuma referência à legislação protetora das minorias sociais ou ao sistema de cotas vigente no Brasil. Tais benefícios - e isso ainda é uma incógnita - poderão, no futuro, acentuar as disparidades profissionais e salariais. Afinal, chegará o momento em que seremos obrigados a cumprir o princípio constitucional da igualdade em sua inteireza. Essa observação não desmerece a crítica social realizada pelo jornalista. Afinal, estamos no século 21 e os edifícios modernos ainda não se livraram do quartinho de serviço. É o novo modelo de "senzala" que convive com jornadas de trabalho análogas ao de escravos. Vale a pena recordar que lá pelo século 19, a obra o "Primo Basílio" de Eça de Queiroz, fiel retrato da hipocrisia da classe burguesa de Portugal, inseriu o "direito de resistência" da empregada doméstica. E o relato de Eça caminha numa direção perigosa: apenas com requintes de maldade e chantagem, será possível a inversão de papéis entre empregados e patrões. Não sei se Lula e sua "entourage" estariam dispostos a esse tipo de risco. Num sistema onde a educação é artigo pouco dignificado, tudo é possível. É preciso não esquecer que as palavras na literatura são verdades por vezes incômodas e intricadas. Elas desafiam conceitos enraizados, possibilitam a denúncia social, promovem a reflexão, questionam o "status quo" e auxiliam a crítica severa dos nossos costumes na tentativa de alcançar uma sociedade mais justa e menos desigual. Por isso ousamos completar as ideias do jornalista com um curto registro: deve-se ter com a educação e com os livros uma relação antropofágica semelhante ao ultimato da esfinge de Tebas: "decifra-me ou devoto-te". No que se refere aos livros, estamos lendo muito pouco e até o presidente da República afirma que aquele que lê "deixa de fazer alguma coisa"- possivelmente mais importante. Diferente é o entendimento de Javier Milei, o presidente argentino. Acaba de publicar um livro de ensaios: Viva a liberdade, Carajo! em que defende o fim do assistencialismo estatal.

Dayse de Vasconcelos Mayer , doutora em ciências jurídico-políticas.

 

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