Desrespeito ecoa impunidade
Omissão na fiscalização pelo poder público estimula a disseminação da falta de educação junto com o barulho
Faz tempo que as procissões cultuavam a concentração da fé em cânticos entoados à luz de velas, em trajetos pelas ruas que primavam pela demonstração de introspectiva religiosidade. Mas hoje em dia, até os cortejos de santos e santas devem ser guiados, via de regra, por espalhafatosos carros de som, quando não por trios elétricos, além de gritos ao microfone e estampidos de fogos de artifício – inclusive nos fervorosos desfiles realizados tarde da noite ou na madrugada. Santos e santas não têm nenhuma culpa, claro, pela insistência cada vez maior de se importunar a tranquilidade alheia, na hora do repouso ou do sono: seus fiéis seguidores também carregam o costume atualíssimo do desrespeito aos outros, revelado em alto e péssimo som no espaço público, nos condomínios e vizinhanças, ou mesmo em ambientes fechados de estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, em muitas cidades brasileiras. E nesse aspecto, o Recife é um triste exemplo.
O comportamento mal-educado reflete, nos ambientes domésticos ou coletivos, um egoísmo exuberante, empavonado, em geral resultante de recalques e carências que não demoram a se mostrar. A cultura favorece o mau hábito, no volume às alturas de músicas de sofrência para que todos saibam e se compadeçam do sofrimento que se tem ou já se teve – ou se deseja ter, no cúmulo da propaganda de um estilo de vida destorcido por letras deprimentes. Para os fãs desse tipo de música, do samba ao sertanejo, o barulho compartilhado é indissociável do prazer da experiência, nem se cogitando a possibilidade lógica e ética dos fones de ouvido.
A perda de civilidade acompanha a desvalorização da cidadania. Desprotegidos contra o abuso sonoro, cidadãos repetem o padrão do desrespeito, já que ninguém liga mesmo, a fiscalização é precária e os governantes, lenientes – até por promoverem, seus governos, festas populares que não dão a menor bola para o entorno de milhares de pessoas que não participam da euforia. Mas até a cidadania desvalorizada tem seus limites. Todos os dias, a redação do JC e de outros veículos de imprensa recebem queixas da população, que se referem com impaciência aos ataques sonoros à tranquilidade dos lares e à sensatez que deveria reger a vida em comum.
Na capital pernambucana, no caso de estabelecimentos comerciais como bares e restaurantes, a legislação é incompleta, pois não permite a cassação da licença de funcionamento por descumprimento da Lei do Silêncio. No último ano de mandato, importante momento do calendário político, a Prefeitura diz que vai endurecer a fiscalização. As reclamações contra poluição sonora são muitas e chegam aos órgãos municipais e à polícia. Falta, para variar, resposta concreta das autoridades. Se até a entidade dos bares e restaurantes apoia iniciativas pela “paz sonora” e “convivência harmônica” na cidade, o cumprimento da lei pede disposição e agilidade da gestão pública, para que o respeito aos outros não continue parecendo um favor dos deseducados para a maioria.