A democracia premiada
De um livro que virou filme ao talento artístico de mãe e filha, o prêmio para Fernanda Torres é muito mais que distinção cinematográfica
A consagração de uma atriz brasileira em carreira internacional, agraciada com um dos mais importantes prêmios do audiovisual no mundo, pode ser compreendida em diversos significados. E traz algumas boas mensagens que ampliam o momento histórico vivido por Fernanda Torres, filha de Fernanda Montenegro, compartilhado pela equipe do filme “Ainda estou aqui” e pelo escritor Marcelo Rubens Paiva, autor da obra que inspirou a produção, bem como a sua família e amigos, retratados na adaptação para o cinema. Por extensão, a premiação mexe com a identidade coletiva, sacudindo a imagem nacional no espelho da tela grande – de todas as telas e redes – através da abordagem sensível, não apelativa, de um dos períodos mais sombrios da história recente do país. Recente, sim, pois ao contar o sofrimento e resiliência de uma mulher, a mãe do escritor, que precisou lidar com o assassinato do marido pela ditadura militar, o filme encontra ainda eco na família viva.
O homicídio político de Rubens Paiva foi reconhecido oficialmente, alguns anos depois do fim do regime, e quatro décadas após o seu desaparecimento. O resgate da trajetória de Eunice Paiva, interpretada com brilho por Fernanda Torres, vem do mérito do cineasta Walter Salles, e ganha especial relevância para uma época em que ensaios autoritários ameaçam a democracia em várias partes do planeta. A distinção à talentosa filha de Fernanda Montenegro, que faz participação especial no filme, também tem um sentido que transcende a esfera cultural: trata-se da valorização da liberdade de expressão, da transparência de informações históricas, da verdade como valor democrático inegociável, e da democracia como ambiente necessário ao desfrute da vida familiar, bem como para o desenvolvimento dos potenciais e dos sonhos dos indivíduos.
A violência ideológica que provoca a ruptura dos laços cotidianos pode ser vista, em nossos dias, longe do Brasil, na China, na Coreia do Norte, na Rússia, no Afeganistão, e mais perto, na Venezuela e em Cuba. E mesmo nas democracias formais, o aparato da força tem respaldo, seja pelo crime organizado que se infiltra na sociedade, seja no organograma do Estado, sob a complacência e até o estímulo de parte da população. É nesse ponto que a importância maiúscula do vigor artístico e da tradição cultural emergem. Na escrita de um livro que une memória e o dom da palavra escrita. Na produção de um filme que toca o coração e a consciência das pessoas, não apenas brasileiras, ao remeter a um assunto universal e atual.
“A arte no Brasil existe e perdura”, declarou a atriz depois da premiação. Uma arte livre, autônoma, criativa e crítica, como deve ser o fazer artístico em um país democrático. E a democracia se revigora com o patrimônio cultural que se renova em obras da qualidade do livro de Marcelo Rubens Paiva, como de tantos escritores, do filme de Walter Salles, como de tantos diretores, e da interpretação de Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello e tantos atores e atrizes no Brasil.