A força de uma cidade vem do seu povo, da sua história e da sua cultura. Vem do poder de se reinventar diante das diferentes adversidades, de evoluir. De buscar o empoderamento, o pertencimento, o bem comum, independente da presença do poder público. No dia em que Olinda completa 485 anos e a capital pernambucana chega aos 483 anos, o Jornal do Commercio traz histórias de força e superação. Da força que vem das comunidades, das periferias das cidades irmãs. Que é negra, de resistência e de luta por direitos e espaços. Uma força que transforma vidas e realidades todos os dias.
Dos manguezais vem a força de um povo que transforma todos os dias a própria história. Poucas décadas atrás, a Ilha de Deus, no bairro do Pina, Zona Sul da capital, era conhecida pelos altos índices de violência. Sem ligação com o continente ou fornecimento de água e energia, faltava tudo aos moradores, que se equilibravam em palafitas sobre o mangue para conseguir tirar o sustento da pesca. Era a “Ilha sem Deus”. Uma realidade que começou a ser transformada há 36 anos, com a chegada do Centro Popular Educacional Saber Viver.
“A ilha da minha infância era muito pobre e esquecida. Por ser lugar de difícil acesso, as pessoas maldosas aproveitavam para se esconder. Aqui, na época, só se chegava de barco ou a nado. Um completo abandono”, lembra Geiseane Gomes, 32 anos, hoje o nome por trás do Bistrô Negralinda. “Uma das coisas que mais me entristecem contar é que as pessoas precisavam mentir o endereço se quisessem ter um emprego”, lamenta Edy Rocha, coordenador de projetos sociais da ONG Saber Viver.
Morador da Ilha entre 1965 e 1968, Edy, hoje cineasta e empreendedor social, foi chamado por mulheres da ilha há cerca de 10 anos para desenvolver um projeto de geração de trabalho e renda para a população. “Eles estavam passando por uma reestruturação, com a retirada das palafitas e a construção de casas pelo governo. Precisavam pagar água, energia e se sustentar.”
O caminho foi apostar no empoderamento da comunidade, com qualificação profissional e suporte para que os moradores, em sua maioria mulheres, se tornassem empreendedores. “Meu papel foi ensinar a eles que podem ser o que quiserem. Acredito que para desenvolver um território é necessário desenvolver as pessoas”, afirma o coordenador da ONG.
Assim, a comunidade deixou de ter apenas pescadores para ter artesãos, cozinheiros e guias turísticos. De temida, a Ilha de Deus passou a ser ponto turístico. Só em 2019, a ilha, que abriga mais de duas mil pessoas, recebeu 8 mil visitantes através do programa de turismo de base comunitária. Quem visita o local, aprende sobre o dia a dia da comunidade, sobre meio ambiente, gastronomia e cultura.
Uma mudança que deu aos moradores algo mais valioso do que apenas a dignidade: autoestima. “Hoje as pessoas têm orgulho de dizer que vivem na Ilha de Deus, uma comunidade que é exemplo de superação pela força do trabalho”, afirma Edy Rocha.
ALTO JOSÉ DO PINHO
“Respiramos arte, respiramos cultura e viveremos de alegria e paz.” O verso é da banda Devotos, que levou para o Brasil e para o mundo as dores e belezas do Alto José do Pinho, na Zona Norte do Recife, bairro onde o grupo nasceu. A efervescência cultural do Alto ajudou a transformar o quadro social e a quebrar o estigma de violência, inspirando iniciativas que buscam a melhoria de vida dos mais de 12,3 mil habitantes.
“O bairro sempre teve essa característica cultural. Aqui temos afoxés, caboclinhos, muitas expressões diferentes. Mas sempre fomos mais vistos pela violência divulgada pela mídia”, lamenta Marconi Santos, conhecido como Cannibal, vocalista da Devotos. O estigma da insegurança era tanto que os moradores sentiam vergonha de dizer onde viviam. “Tinha gente que perdia oportunidade de emprego simplesmente por morar aqui”, relata Cannibal.
A visibilidade trazida pela banda ajudou a quebrar o estereótipo, mas a Devotos foi além. Criou, em 2002, uma rádio comunitária, para que a própria população pudesse produzir conteúdos e fosse ouvida. “A gente queria trazer a comunidade para fazer comunicação. Oferecemos oficinas de rádio comunitária, para falarmos sobre os direitos deles”, lembra Cannibal. A rádio, que está parada atualmente, deve ser retomada ainda este ano. “O Alto José do Pinho não mudou muito fisicamente. Precisamos de muitos equipamentos, como creche e espaços de lazer. Mas uma coisa a gente conseguiu: aumentar a autoestima dessa galera”, avalia o artista.
O exemplo de cidadania da Devotos inspirou outras ações que têm transformado o bairro. É o caso do Projeto Alto Sustentável, desenvolvido há cinco anos, com foco em ações voltadas para o meio ambiente. “Como morador, vivenciei os problemas socioambientais da comunidade e quis fazer algo para mudar a realidade. Através dos mutirões, realizamos ações para a reconstrução de locais vulneráveis, como limpeza, pintura e grafite”, conta Hamon Dennovan, biólogo e servidor público, idealizador do projeto.
Sobre Formada em Jornalismo pela Uninassau em 2017. Atua na editoria de Cidades desde 2016, tendo passagem pelas editorias de Política e Economia. É também colunista do JC Online e apresentadora da grade da TV JC
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