Coronavírus

Morador de bairro pobre tem mais chances de morrer de covid-19

A chance de morte de um morador de Brejo de Beberibe, Zona Norte do Recife, que desenvolve a forma grave da covid-19, é sete vezes maior em relação àquela de quem mora em Boa Viagem, na Zona Sul

Leonardo Spinelli
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Leonardo Spinelli
Publicado em 05/05/2020 às 18:31 | Atualizado em 06/05/2020 às 11:07
Divulgação/Inaldo Lins
Bairros como Nova Descoberta, na Zona Norte do Recife, têm um nível de letalidade de 23,2% ou duas vezes mais alto que a média registrada no Recife. - FOTO: Divulgação/Inaldo Lins

A chance de morte de um morador de Brejo de Beberibe, Zona Norte do Recife, que desenvolve a forma grave da covid-19, é sete vezes maior em relação àquela de quem mora em Boa Viagem, na Zona Sul. O primeiro bairro está numa das regiões mais pobres do Recife, enquanto o segundo é um dos mais ricos. A comparação mostra que o nível de letalidade do coronavírus em áreas mais pobres do Recife é maior, mostram os sucessivos balanços de casos confirmados pela Prefeitura.

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Apesar de no último relatório analisado pela reportagem, de 4 de maio, o Brejo de Beberibe registrar apenas nove casos de pessoas que foram atendidas com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), foram quatro o número de mortes, o que dá um percentual de letalidade de 44,4% dos casos. Enquanto isso, em Boa Viagem, o número de casos é bem maior, 281, contra 18 mortes, o que dá um nível de letalidade de 6,4%, abaixo do percentual médio da cidade do Recife que era de 10,3% no dia 3 de maio (2837 casos de SRAG, contra 294 óbitos).

“A tradução é essa, quanto mais desiguais forem os bairros do ponto de vista do indicador sócio-econômico, maior é a letalidade observada em casos graves”, observa a epidemiologista Ana Brito, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz.

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Segundo o professor do Departamento de Ciência Política da UFPE, Dalson Figueiredo, ainda é cedo para cravar, mas a primeira evidência de que a letalidade da covid-19 está diretamente ligada às questões socioeconômicas veio dos Estados Unidos, onde os negros são os mais atingidos pela doença e sofrem mais com a mortalidade.

“É o esperado, porque quem tem dinheiro pode se precaver de forma mais segura, tem acesso ao sistema privado de saúde e até mais acesso a itens de higiene. Regiões mais pobres têm índice de coabitação mais alta, o que facilita a disseminação, além de terem menos acesso a saneamento básico e a saúde”, diz. “Vamos encontrar relação entre pobreza e letalidade, mas precisamos de mais tempo para fazer comparações mais confiáveis. O mais adequado é fazer por grupos de bairros porque ainda temos uma amostra pequena”, disse.

Ana Brito observa que, diante dos números disponíveis, a realidade pode ser ainda pior. “O dado de letalidade reflete que nós só temos informação de casos cujo teste foi positivo. Os assintomáticos ou testados tardiamente que foram negativos não estão sendo computados como casos. Nossos dados não estão refletindo a magnitude e incidência da doença na população. A gente vê apenas a ponta do iceberg”, diz.

Brejo de Beberibe é um estreito e alongado bairro vizinho a leste de Dois Irmãos, que faz divisa com Dois Unidos, Linha do Tiro e Nova Descoberta. Juntos, esses quatro bairros registraram 125 moradores com SRAG que levaram a óbito 29 deles. Um nível de letalidade de 23,2% ou duas vezes mais alto que a média registrada no Recife.

Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano no Recife, de 2005, último dado disponível da Prefeitura do município sobre o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M), os quatro bairros estão na região menos desenvolvida da cidade, com um IDH que variava à época entre 0,632 e 0,699, índice parecido a um país como o Gabão, da África subsaariana. Nessas quatro localidades, segundo o IBGE, moram 90,3 mil recifenses.

Enquanto isso, a região de Boa Viagem, apresentava em 2005 o maior IDH-M do município, entre 0,865 e 0,964, comparável à Noruega (0,953). O IDH-M é uma síntese de três dimensões do desenvolvimento humano: longevidade, educação e renda.

Segundo a especialista, a letalidade nos bairros mais pobres está relacionada à falta de assistência e acesso à saúde. “Quanto mais difícil é chegar ao serviço de saúde, quanto mais tardio, mais óbitos teremos. As comunidades com os piores dados sócio-econômicos vão ser as mais afetadas”, diz.

Ana Brito esclarece que a letalidade mostra a gravidade da doença e qual o impacto em relação aos casos graves que evoluem para o óbito, número expresso em percentual. “Uma letalidade de 6% é alta. Isso mostra que de cada 100 pessoas, seis vão morrer. Esse é o percentual da meningite meningocócica, com a circulação da bactéria (meningococo).”

Em relação ao coronavírus, a especialista lembra que de 85% das pessoas afetadas não vão desenvolver sintomas e, no caso dos 15% que terão problemas de saúde, 30% deles podem chegar a óbito. “É por isso que a covid-19 pressiona o serviço de saúde. No Recife com 1,5 milhão de habitantes, 70% serão infectados e 20% vão desenvolver a forma grave”, compara. Em números absolutos, isso representaria que 210 mil pessoas no município podem chegar a desenvolver a forma grave da doença. Se for levada em consideração o atual percentual de letalidade, os números dizem que mais de 20 mil recifenses poderão morrer da covid-19. Até o último dia 3, eram 294 óbitos
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“Não teremos paralelo em relação a estatísticas de outros países que não têm desigualdade tão profundas quanto o nosso. O Brasil é um país com mais de 200 milhões de habitantes, terceiro mais desigual do mundo. A gente tenta comparar o modelo com Espanha, Itália, Noruega, Finlândia, Reino Unido ou China. Em nenhum desses países há um paralelo em relação à nossa estrutura social perversa”, lamenta a pesquisadora.

A comparação entre nível de pobreza e letalidade se repete nos outros bairros do Recife. Quanto mais desenvolvida a localidade, menos casos de óbitos são registrados no Boletim Epidemiológico da Secretaria de Saúde do Recife.

CAMPANHA


Ana Brito faz parte da Rede Solidária em Defesa da Vida em Pernambuco, que congrega um grupo multidisciplinar e interdisciplinar de profissionais da sociedade civil que vão de advogados a agentes de saúde. “Temos discutido muito como trabalhar um modelo de assistência que vai além dos hospitais de campanha. Tem que existir novas maneiras de lidar com a pandemia, que se soma aos outros problemas cotidianos, com as doenças cardiovasculares. A gente precisa ter hospitais livres de covid-19. Nem todos deveriam estar atendendo a esses pacientes, até para reduzir o risco dos profissionais de saúde”, salienta a pesquisadora.

Segundo ela, uma solução seria a implantação de lista única para leitos de UTI e respiradores para casos graves da doença. “Está nos preceitos constitucionais e também na lei orgânica da Saúde, quando há uma situação de emergência coletiva é preciso trabalhar com lista única, independentemente de ser sistema público ou privado. Pessoas independentemente de origem e residência tenham direitos iguais. É a mesma lógica dos transplantes. É essa a estratégia que estamos lutando para implementar”, diz.

O grupo também defende que sejam implementadas diretrizes estipuladas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que orienta as autoridades públicas a monitorar os casos, exigir isolamento domiciliar e em casos de dificuldades para isso, que sejam criadas estruturas intermediárias. “As escolas estão fechadas, podem servir de abrigo para pessoas sintomáticas. Outra coisa é a testagem, não tem como monitorar uma epidemia dessa magnitude sem verificar, a Coréia do Sul é o exemplo clássico, de que testagens aliadas às medidas de isolamento nem tão dramáticas são suficientes para mitigar a epidemia.”

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