POLÍCIA

"Não deram chance do meu filho se defender". A dor da mãe que viu filho morrer em operação policial no Grande Recife

Lucas Luz Marques da Rocha, de 17 anos, foi morto no último sábado (17) a poucas ruas de distância de casa, no Alto da Colina, em Jaboatão dos Guararapes, Grande Recife, durante operação da Polícia Militar

Katarina Moraes
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Katarina Moraes
Publicado em 20/10/2020 às 15:43 | Atualizado em 20/10/2020 às 19:02
BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
A mãe de Lucas, Edilma Maria da Luz, denuncia violência policial e refuta a versão da Polícia Militar de que seu filho estaria armado e portando drogas - FOTO: BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

No dia 17 de outubro, último sábado, o estudante Lucas Luz Marques da Rocha saiu da sua casa, no Alto da Colina, em Cavaleiro, Jaboatão dos Guararapes, Grande Recife, por volta das 18h40. Ao chegar na rua da tia dele, na mesma comunidade, o adolescente de 17 anos foi abordado e alvejado com um tiro disparado por um policial militar, enquanto outros dois rapazes foram detidos por suspeita de envolvimento com tráfico de drogas. A corporação alega que ele estaria armado e que portava entorpecentes. Já a Secretaria de Defesa Social (SDS) informou que as informações são de que o jovem teria vindo a óbito após bater a cabeça no chão, durante fuga. Na manhã desta terça-feira (20), familiares denunciaram violência na ação em protesto na BR-232 e negaram qualquer envolvimento do menor com crimes. 

Um familiar que preferiu não se identificar conta que estava em uma esquina do bairro quando viu duas viaturas passarem em alta velocidade pela comunidade e que logo depois ouviu o barulho de um tiro, mas não imaginou que tivesse sido contra o jovem. Outro parente diz que estava no banheiro quando ouviu um disparo. “Quando saí e coloquei a cabeça na janela, disseram que tinham baleado um [rapaz], e chegou a notícia que tinha sido ele, então liguei para a mãe dele e avisei”. A mãe de Lucas, Edilma Maria da Luz, estava em casa quando tudo aconteceu. “Faziam uns 5 ou 10 minutos que ele tinha saído quando recebi uma ligação da minha irmã dizendo ‘desce que teu filho foi baleado pela polícia’”, relata.

BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
Moradores do Alto da Colina, no Curado, protestam na BR 323 pela morte do adolescente Lucas de 17 anos, que segundo eles foi morto pela polícia com uma bala de fuzil. - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
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Moradores do Alto da Colina, no Curado, protestam na BR 323 pela morte do adolescente Lucas de 17 anos, que segundo eles foi morto pela polícia com uma bala de fuzil. - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM
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Familiares e amigos da vítima protestam - Divulgação
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Familiares e amigos da vítima protestam - Divulgação
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Moradores do Alto da Colina, no Curado, protestam na BR 323 pela morte do adolescente Lucas de 17 anos, que segundo eles foi morto pela polícia com uma bala de fuzil. - BRUNO CAMPOS/JC IMAGEM

Quando a mãe chegou ao local do incidente, Lucas não estava mais lá. O adolescente foi levado pelo efetivo até o Hospital Otávio de Freitas (HOF), localizado em Tejipió, na Zona Oeste do Recife, mas, segundo a família, já estava morto quando chegou na unidade. “O maqueiro me disse que meu filho já chegou sem vida”, disse a mãe. Parentes de Lucas afirmam que, ao ser questionados, os policiais negaram ter atirado no rapaz. “Disseram: ‘mãe, não se aperreie, não, garanto a você que ele não tem tiro nenhum’”, conta Edilma. A causa do óbito na certidão atestada por um médico, no entanto, diz o contrário: “tronco penetrantes do tronco decorrentes, da ação de instrumento pérfuro contundente”, instrumento tipicamente caracterizado por projéteis das armas de fogo, segundo o Canal de Perícia do Brasil.

Vizinhos que não aceitaram conversar com a reportagem informaram à mãe sobre o momento da abordagem. “Quando eles fizeram isso, meu filho estava parado, já tinha sido abordado. Eles atiraram nele por trás, com um fuzil. Eles estavam atrás de uma pessoa também negra, parecida com meu filho, com o corte de cabelo e jeito parecidos”, diz Edilma, que completa: “eles não deram chance nem do meu filho se defender.” Ela foi até o Instituto Médico Legal (IML) liberar o corpo e relata ter visto o rosto de Lucas ferido. “Ainda deram coronhada, ele estava com a cabeça toda machucada. Deram muito chute no lado do rosto direito do meu filho com ele caído no chão, ele estava com bastante cortes e arranhões”, disse. Lucas foi enterrado na última segunda (19), no cemitério Parque da Paz, na Muribeca.

A Polícia Militar, por outro lado, defende ter visto cinco pessoas com “atitudes suspeitas” que, com exceção de Lucas, empreenderam fuga na localidade. A corporação diz ter dado ordem para que ele colocasse as mãos na cabeça, mas afirma que o adolescente efetuou disparos de arma de fogo contra os policiais enquanto tentava fugir. Com isso, revidaram a agressão, “atingindo-o no glúteo”, região diferente da informada na perícia. Por fim, completa que durante a fuga ele caiu em um barranco, e que “o homem” carregava uma sacola com 53 pedras de crack e 117 bigs de maconha, além de um revólver calibre 38, contendo três munições pinadas, uma deflagrada e duas intactas. Outros dois indivíduos, com registro criminal, foram capturados, ouvidos e liberados". Quando questionada se o tiro teria sido com fuzil, a PM afirmou que “perícia necessária será executada pelo Instituto de Criminalística”.

REPRODUÇÃO
Certidão de Óbito de Lucas Luz - REPRODUÇÃO

Edilma refuta a versão. “Disseram que meu filho atirou, mas todo mundo na comunidade ouviu um só tiro, se ele estivesse armado teriam tido muito mais tiros”. Ela foi até à Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) ainda no sábado. Lá, viu quando os dois suspeitos presos pela polícia chegaram em uma viatura, enquanto aguardava por atendimento. “Mandaram eu aguardar do lado de fora. Não fizeram exame de balística no meu filho, não me deram chance de testemunhar nada. Não fiz ocorrência nenhuma, não fui recebida por ninguém”, conta.

Por nota, a Polícia Civil informou que “inquérito policial foi instaurado e o caso está sendo conduzido pelo delegado Marconi Lustosa, da 13ª Delegacia de Homicídios, que se pronunciará ao final do procedimento policial”.

O Ministério Público de Pernambuco afirmou que “aguardará o envio do inquérito policial à Central de Inquéritos de Jaboatão dos Guararapes” para se pronunciar.

Já a Corregedoria Geral da Secretaria de Defesa Social (SDS) disse ter aberto uma Investigação Preliminar (IP) para apurar as circunstâncias da morte do adolescente. "Caso haja elementos suficientes, poderá ser aberto um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para investigar a conduta da equipe do Grupo de Apoio Tático Itinerante (Gati) do 25º Batalhão da PMPE", afirmou, por nota.

A SDS completou: "informações iniciais dão conta de que o jovem teria vindo a óbito após bater a cabeça no chão, durante fuga. Ele, assim como outras pessoas, foi abordado pelo efetivo policial, acionado para uma ocorrência de troca de tiros na área. Na ocasião, houve a apreensão de drogas e de uma arma de fogo. O jovem que teria tentado fuga e se acidentado, foi socorrido para o Hospital Otávio de Freitas, onde faleceu após cirurgia. A Corregedoria vai colher informações, depoimentos e todos os elementos possíveis para elucidar a atuação dos servidores durante essa ação."

Quem era Lucas Luz

“Se eu fecho os olhos, minha mente desenha você
Tapo os ouvidos, mas consigo escutar sua voz
Só de pensar que nunca mais eu vou te ver
Dói, dói, dói
Que mundo é esse tão cruel que a gente vive?
A covardia superando a pureza
O inimigo usa forças que oprimem, oprimem
É, vai na paz, irmão, fica com Deus
Eu sei que um dia eu vou te encontrar
Valeu menor, espera eu chegar”

A música “Espera eu Chegar”, descrita acima, dos MCs Cajá e Kevin O Chris é trilha sonora nas homenagens que circulam nos grupos do WhatsApp de amigos e conhecidos de Lucas. Todos os amigos e familiares que a reportagem do JC ouviu contam que as maiores diversões de Lucas era “empinar papagaio”, brincadeira também conhecida como “pipa”, e jogar futebol. Estudante da 7ª e 8ª série do Ensino para Jovens e Adultos (EJA) na Escola Ministro João Alberto, também em Cavaleiro.

CORTESIA DA FAMÍLIA
Lucas Luz, adolescente de 17 anos morto no dia 17 de outubro - CORTESIA DA FAMÍLIA

O adolescente morava com a mãe e outros três irmãos e fazia questão de dormir todas as noites junto à Edilma. “A gente se entendia muito bem, ele era muito dedicado. Quando eu pedia para ele fazer qualquer coisa, ele fazia. Quem pedisse um favor a ele, ele fazia. Era um bom irmão, um bom amigo, uma ótima pessoa”, conta a mãe de Lucas. “Eu vou lembrar dele vivo e do amor que a gente tinha.”

O melhor amigo da vítima, João (nome fictício), conhecia Lucas desde criança e revela que ficou sem reação quando recebeu a notícia. “Ele era gente boa, não merecia isso [...] ele queria mesmo era ser do quartel, servir”. Ele conta que ambos já tinham medo da violência policial na área. “A gente já tomava cuidado, medo a gente tinha, o cara não sabe o que pode acontecer”, afirma.

Um entre muitos

As versões da polícia e as da família divergem, mas é fato que um direito foi violado: o da vida. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”, diz o artigo 5º da Constituição brasileira de 1988. Lucas, no entanto, não é caso isolado, e sim mais um no amplo registro de mortes decorrentes de intervenção policial do País.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que teve a mais recente edição divulgada nesta segunda-feira (19), revela um aumento de 6% no total de homicídios cometidos durante ação policial no Brasil entre os primeiros semestres de 2019 e 2020, com taxa variando de 3.002 para 3.181. Em Pernambuco, onde apenas as vítimas decorrentes de intervenções policiais em serviço são contabilizadas, o crescimento foi de 71,9% no mesmo período, o que resultou na morte de 55 pessoas entre janeiro e junho deste ano.

Do total de vítimas da violência policial no Brasil no último ano, 79,1% eram negros, 74,3% eram jovens de até 29 anos e 99,2% eram homens; o exato perfil de Lucas da Luz, jovem de 17 anos negro e periférico. Para Edilma, a raça do adolescente foi crucial para a execução ter acontecido: “os outros dois branquinhos eles algemaram e botaram em uma viatura, e o negro mataram”, diz. Para o historiador e diretor do Instituto Menino Miguel, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Humberto Miranda, também. “O Brasil tem uma cultura baseada em uma sociedade escravista que ainda continua usando os corpos negros como objetos de interesse dos adultos. A partir daí, você tem um número de crianças e adolescentes que têm perdido suas vidas nessas atuações policiais”, explica.

O especialista também pontuou a violência sofrida pelos policiais. “As pesquisas também indicam que essa força policial é a que mais mata mas também é a que mais morre. É preciso também olhar para essa questão a partir desse complexo sociológico, em que esses policiais que morrem também são negros. A afirmação é confirmada pelo Anuário de 2019, que traz que, dos 172 policiais assassinados no ano, 65,1% eram negros, 55,2% tinham entre 30 e 49 anos e 99% eram homens. Ao invés de ganhar um protesto em seu nome, esta terça-feira seria o dia em que Lucas Luz se alistaria ao exército brasileiro, dando início ao seu sonho de seguir uma carreira militar, projeto, segundo Humberto Miranda, de grande parte dos jovens de periferia, que veem, muitas vezes, este como o único caminho para ascender socialmente. 

Notas de esclarecimento

Polícia Militar de Pernambuco

"Neste último sábado (17), por volta das 20h30, na Rua Alto da Colina, no bairro de Cavaleiro, em Jaboatão dos Guararapes, policiais militares do 25ºBPM, foram averiguar uma informação de que no local havia cerca de cinco indivíduos portando armas e praticando tráfico de entorpecentes. Ao chegar no endereço, o efetivo visualizou aproximadamente cinco pessoas em atitude suspeita que, de imediato, com exceção de um, empreenderam fuga. Neste momento, a equipe policial deu ordem para o indivíduo pôr as mãos na cabeça, foi quando o suspeito efetuou disparos de arma de fogo contra os policiais, enquanto tentava fugar. Os PMs revidaram a agressão, atingindo-o no glúteo. Enquanto tentava fugir, acabou caindo em um barranco. Ele ainda foi socorrido para o Hospital Otávio de Freitas, mas não resistiu aos ferimentos e foi a óbito. O homem carregava uma sacola com 53 pedras de crack e 117 bigs de maconha, além de um revólver calibre 38, contendo três munições pinadas, uma deflagrada e duas intactas.

Dentre os que fugiram, ainda foram capturados dois outros indivíduos, com registro criminal no Portal da SDS (motivo não especificado). Ambos foram ouvidos e liberados na DHPP."

Secretaria de Defesa Social

"A Corregedoria Geral da SDS informa que abriu uma Investigação Preliminar (IP) para apurar as circunstâncias da morte de um jovem de 17 anos, no último sábado, em Cavaleiro, em Jaboatão dos Guararapes. Caso haja elementos suficientes, poderá ser aberto um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para investigar a conduta da equipe do Grupo de Apoio Tático Itinerante (Gati) do 25º Batalhão da PMPE.

Informações iniciais dão conta de que o jovem teria vindo a óbito após bater a cabeça no chão, durante fuga. Ele, assim como outras pessoas, foi abordado pelo efetivo policial, acionado para uma ocorrência de troca de tiros na área. Na ocasião, houve a apreensão de drogas e de uma arma de fogo. O jovem que teria tentado fuga e se acidentado, foi socorrido para o Hospital Otávio de Freitas, onde faleceu após cirurgia. A Corregedoria vai colher informações, depoimentos e todos os elementos possíveis para elucidar a atuação dos servidores durante essa ação."

Polícia Civil de Pernambuco

"A Polícia Civil informa que o inquérito policial foi instaurado e o caso está sendo conduzido pelo delegado Marconi Lustosa, da 13ª Delegacia de Homicídios, que se pronunciará ao final do procedimento policial."

Ministério Público de Pernambuco

"O MPPE aguardará o envio do inquérito policial à Central de Inquéritos de Jaboatão dos Guararapes."

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