Degradados e com aspecto de abandono, habitacionais do Recife expõem ao risco a cidade e seus moradores
No Ministério Público de Pernambuco, mais de 10 conjuntos habitacionais entregues na cidade são alvo de ações por irregularidades
Quando a prefeitura do Recife entregou em 2005 o conjunto habitacional Casarão do Cordeiro, com 704 apartamentos em 22 blocos, as famílias não poderiam imaginar que viver nas palafitas de onde foram retiradas poderia ser equivalente ou até melhor. Embora incompreensível, foi isso que a maioria fez. Quem ficou, passou a conviver com apartamentos entregues sem reboco, com janelas que caíam com o vento, água potável misturada a esgoto, rachaduras e mortes.
Mirian Elias, 26 anos, cresceu com a família no habitacional e viu vizinhos morrerem porque foram agrupados com jovens de comunidades rivais. E o pior: perdeu metade da sua família (mãe, pai e irmão) em um incêndio ao qual relaciona diretamente a falta de infraestrutura na moradia - alvo de ações do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), assim como ao menos outros dez habitacionais na cidade.
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Considerado à época projeto modelo para a habitação de interesse social no Recife, o Casarão contava no papel com estrutura e equipamentos que nunca foram vistos.O que ficou exposto, na verdade, foi justamente o contrário: uma série de problemas em apartamentos novos.
"Ficamos no auxílio-moradia uns três anos, dormindo num quartinho. Quando enfim chegamos ao habitacional, fomos obrigados a conviver com estruturas precárias de um projeto inconcluso. Ficamos felizes porque era o início de uma nova vida, mas o bloco em si foi entregue com problemas estruturais: Não havia piso nem janelas de qualidade. As janelas caiam na cabeça das pessoas, elas caiam quando o vento batia, machucando até crianças", relembra Mirian.
O habitacional do Cordeiro espelha em maior proporção problemas que se espalham por diversas outras moradias entregues pela prefeitura. Lá, além da questão estrutural dos prédios, abriu-se o precedente para a discussão da responsabilidade da gestão sobre a organização condominial e arranjos irregulares nesses prédios.
"Nunca houve síndico. Muitas pessoas venderam seus apartamentos e, para os novos moradores conseguirem ter um comprovante de residência, minha mãe regularizava isso por meio da associação de moradores que presidia. A associação vinha como ferramenta de cobrança do Estado, até mesmo para cobrar uma troca de lâmpadas. A primeira pintura do prédio foi a última, e quem faz a limpeza são os moradores", reclama Miriam.
Nos últimos oito anos, sob gestão do PSB, mesmo partido do atual prefeito João Campos, foram entregues no Recife 20 habitacionais. Em todos, não é raro encontrar muito lixo, além da conurbação entre construções.
O MPPE, especificamente sobre o Casarão do Cordeiro, tem uma ação em tramitação perante a 1ª Vara da Fazenda Pública da Capital para que a PCR elabore um cronograma de manutenção e recuperação das edificações, além da construção de módulos comerciais que já estavam previstos no projeto.
Na 20ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital tramitam ainda ações sobre o Habitacional Governador Agamenon Magalhães; Conjunto Habitacional da Torre, Conjunto Habitacional Sérgio Loreto, Conjunto Habitacional Brasília Teimosa (regularização fundiária), Conjunto Habitacional Via Mangue 3 e Conjunto Habitacional Zeferino Agra.
Na 35ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital tramitam também ações sobre realização de reforma e manutenção do Conjunto Habitacional da Torre; problemas estruturais no Conjunto Habitacional Padre José Edwaldo Gomes; falta de acessibilidade no Conjunto Habitacional Eduardo Campos; possível omissão do Recife no tocante à manutenção do Conjunto Habitacional Josué Pinto e dos reservatórios de água do Conjunto Habitacional Via Mangue I.
De acordo com o gerente de Integração do Crea-PE, Ivan Carlos Cunha, Pernambuco conta com uma lei estadual (13.032) que obriga vistorias periciais e manutenções periódicas em edifícios de apartamentos, inclusive nos habitacionais, que estão na dianteira da falta de fiscalização, já que cria-se uma situação onde a prefeitura aplicaria a si uma "auto-punição" por ser o agente que fiscaliza e é autuado.
"Prédios construídos há menos de cinco anos, precisam de inspeção técnica predial a cada cinco anos. Com mais de cinco anos, essa inspeção precisa ser a cada três. Nesse caso, quem comprou o serviço de construção foi o poder público, então a prefeitura deveria ter a responsabilidade pela interlocução com os moradores, porque o mau uso pode trazer riscos para a segurança. Além disso, é preciso que ela seja mais proativa para cobrar obras de qualidade", avalia.
Ele complementa que "sempre existiram normas que tratam da especificação de inspeções técnicas sobre manutenção predial" e que, além disso, o Crea-PE já elabora um manual técnico para orientar condomínios e prefeituras. "Já temos o conjunto de normas da ABNT (NBR 15575). Ela pode ser considerada um 'ajuntado' de outras normas, evidenciando a responsabilidade de quem constrói".
A prefeitura, responsável pela cessão dos imóveis e contratante das construções, diz que "antes da entrega dos habitacionais é feito um trabalho social de conscientização junto aos futuros moradores".
De acordo com a gestão, nessas ocasiões, as equipes informam aos beneficiários que eles são responsáveis pela manutenção dos conjuntos a partir da data de entrega. No caso dos vícios de construção, a prefeitura reforça que "a obrigação de fazer os reparos é da construtora", mas esclarece que são feitas ações de manutenção antes da entrega dos títulos de propriedade.
Embora a prefeitura atribua aos moradores responsabilidade, no Cordeiro, por exemplo, o que se tem é a declaração de entrega, sem regularização fundiária até hoje.
Família morta pelo fogo em habitacional
Na madrugada do último dia 28 de novembro, a falta de conservação do Habitacional Casarão do Cordeiro pode ter chegado ao extremo de ter levado à morte três pessoas de uma mesma família. Para Miriam Elias, as mortes de sua mãe, pai e irmão estão diretamente associadas a ligações clandestinas de energia que eram recorrentes em praticamente todos os apartamentos do habitacional.
"Depois de certo período, ligações irregulares passaram a ser muito comuns lá. A Celpe (Neoenergia) mudou tudo das instalações e foi lá cortar a energia de muita gente. Muitos tentavam pagar a conta, mas lá não tinha tarifa social e faziam as ligações tomando até energia de um apartamento para outro", detalha.
Como a maioria dos moradores veio de palafitas em áreas de maré, morar no Cordeiro significou o fim da renda que vinha das atividades pesqueiras. A falta de oportunidades fez surgir também, acoplado aos imóveis, construções de mercearias, lanchonetes, lava-jatos e demais estabelecimentos que garantiam dinheiro para a sobrevivência.
"Eles agruparam e largaram todo mundo lá. Jogaram nossa história no lixo", desabafa. No dia da morte de seus familiares, a negação voltou a bater à sua porta. Vizinhos socorreram os feridos e quebraram caixas d'água para apagar o fogo, porque água potável no momento não havia. A construção também não previa a passagem de veículos nas ruas que dividem os blocos.
"(Os vizinhos) Enrolaram (as vítimas) em toalhas molhadas e levaram em carros para o hospital. Talvez se tivesse o socorro devido, estivessem vivos".
Mesmo após a morte, até hoje, Miriam aguarda o pagamento de auxílio pecúlio e moradia e entrega de cestas básicas. O auxílio funeral foi negado à família pelo fato da gestão, segundo Miriam, não fazer reembolsos. O sepultamento não poderia esperar.
"Até agora, eu mesma tive de voltar ao apartamento e fazer uma limpeza sem apoio ou vistoria nenhuma da prefeitura. A Defesa Civil só foi uma vez e mandou colocarmos escoras", detalha. O laudo sobre a causa do incêndio ainda não foi divulgado.