"SABARÉ TRADIÇÃO"

Marquise que caiu no Recife já apresentava alto risco estrutural há 8 anos; diretor de bloco de Carnaval morreu no acidente

Arthur Cardoso, diretor do bloco Saberé Tradição, cuja sede funcionava no Edifício Leny, foi enterrado nesta segunda-feira (7) no Cemitério Parque das Flores. Registro de fiscalizações mostra que incidente poderia ter sido evitado

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Katarina Moraes

Publicado em 07/03/2022 às 19:08 | Atualizado em 08/03/2022 às 15:31
Editorial
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A marquise do Edifício Leny, que abriga a sede do bloco Saberé Tradição, na área central do Recife, já apresentava alto nível de risco estrutural desde 2014, quando foi emitida uma segunda autuação de fiscalização pela Prefeitura do Recife. No último sábado, a queda de parte da marquise resultou na morte de um diretor da agremiação, Arthur Campos Cardoso, de 68 anos. Mesmo com o perigo de acidente há anos, não houve interdição do espaço para que a regularização fosse feita. Para especialistas consultados, o caso expõe a falta de manutenção do local - que, por ser privado, cabe legalmente ao proprietário - e falhas na cobertura de fiscalização predial.

As atuações foram constatadas pelo JC em pesquisa no Portal de Licenciamento da Prefeitura do Recife. Até hoje, ambos os processos seguem tramitando. Um deles solicitava que o condomínio impedisse o acesso à marquise, comumente utilizada por pessoas no período de Carnaval, segundo moradores do prédio. Em entrevista, um proprietário de algumas salas comerciais no térreo do Leny, que não quis se identificar, afirmou nunca ter recebido qualquer solicitação, e que recebeu a notícia da queda da marquise com surpresa.

O edifício é de uso misto - ou seja, além de lojas, é composto também por apartamentos. Alguns proprietários disseram que há anos não é cobrada nenhum tipo de taxa condominial, e que sequer há um síndico no local. "Nós quem cuidamos, fazendo uma reforma ou outra; mas a maioria está desempregada, então não conseguimos fazer uma grande reforma para a gente não ter que sair, porque não temos para aonde ir. Faz uns cinco anos que a Prefeitura veio, e também não solicitamos mais porque nunca vimos necessidade", disse Adenilsa Bezerra, de 48 anos, enquanto observava a Defesa Civil fazer vistorias e derrubar o que restou da marquise, sob supervisão da guarda municipal.

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Adenilsa Bezerra, de 48 anos, expõe dificuldade dos moradores do Edifício Leny em arcar com grandes reformas - Alexandre Aroeira/Jc Imagem

Desde 2006, Pernambuco conta com uma legislação que obriga vistorias periciais e manutenções periódicas nas edificações públicas e particulares em todo o Estado. A lei nº 13.032 diz que a manutenção predial é dever dos proprietários e dos possuidores das unidades autônomas de imóvel (como apartamentos e lojas), assim como o custo para eventuais reformas, mas que o fato “não exclui a competência e responsabilidade legal dos órgãos municipais” que são incumbidos de fiscalizá-los, no caso, a Defesa Civil de cada cidade.

Sobre isso, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco (Crea-PE) pontua que tal exigência legal às prefeituras não estão sendo cumpridas, e que estas têm têm o dever de atuar para prevenir desabamentos. “Esse problema tem ocorrido com certa frequência, e não dá mais para ficar dizendo que a lei tem dificuldade em ser executada, mas agir para de alguma forma construir um caminho para que seja, promovendo segurança à sociedade”, diz o gerente da área de planejamento do órgão, Ivan Carlos Cunha.

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Queda de marquise no Bairro de São José expõe falta de manutenção em edifícios do Recife - Alexandre Aroeira/Jc Imagem
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Queda de marquise no Bairro de São José expõe falta de manutenção em edifícios do Recife - Alexandre Aroeira/Jc Imagem
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Queda de marquise no Bairro de São José expõe falta de manutenção em edifícios do Recife - Alexandre Aroeira/Jc Imagem

Para contribuir com isso, o Crea-PE pretende realizar reuniões com diferentes atores - proprietários, síndicos, governo do estado e prefeituras - para discutir a ocorrência desses casos. Em fevereiro deste ano, um vendedor de materiais de construção também foi atingido por marquise na Avenida Norte, no bairro de Santo Amaro, área central. Em maio de 2021, um comerciante e uma criança de 8 anos foram vítimas de um desabamento de imóvel no Pina, na Zona Sul do Recife. Em fevereiro de 2021, uma idosa morreu após uma pedra se desprender de edifício na Rua da Aurora e cair sobre sua cabeça.

Roserlândia Antônia de Santana, 49 anos, que dormia debaixo da marquise do Saberé, conta que deixou o ponto um dia antes da queda ao ter ouvido um estalo na estrutura, e diz temer o estado de outros edifícios no Bairro de São José, já que os utiliza para se abrigar durante a noite. "A gente que mora na rua procura uma marquise para não se molhar quando chove. Onde minha irmã mora também está rachado. Vivemos com medo que caia."

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Roserlândia Antônia Santana, 48 anos, dorme nas ruas e teme queda das estruturas - Alexandre Aroeira/Jc Imagem

Especialista em direito público, o advogado Fábio Silveira explicou que os condôminos e o síndico podem ser responsabilizados pela morte de Arthur, assim como os órgãos públicos - caso seja constatado crime de prevaricação - que consiste no retardo ou na falta de prática do ofício pelo qual era responsável. “Se houve expedição da ordem pela prefeitura, se os proprietários foram intimados com prazo para correção e não cumpriram, serão punidos por responsabilidade culposa. Mas se o poder público deixou o processo parado e não deu prosseguimento a ele, ele também é responsável por omissão”, explica.

Esclarecimentos

A reportagem do JC perguntou à Secretaria de Controle Urbano se foi dado algum prazo ou ao condomínio para regularização do prédio e ordem para isolá-lo. Leia abaixo a íntegra da resposta:

Existe uma sentença expedida pela 8ª Vara da Fazenda Pública da Capital, em ação judicial proposta pelo Município do Recife, determinando as medidas de recuperação do imóvel pelos condôminos. Houve algumas tentativas, por parte do Judiciário, de notificar o condomínio e fazer cumprir a decisão. A última foi no dia 5 de novembro de 2021, quando um oficial de Justiça chegou a ir, mais uma vez, ao local para tentar intimar os moradores, sem colaboração dos ocupantes para cumprimento. Já a classificação de risco 3 diz respeito à marquise, não ao edifício como um todo.

O JC também procurou o proprietário do imóvel, que não foi localizado. O espaço está aberto para esclarecimentos.

Já Defesa Civil afirmou “que realiza vistoria em imóveis a partir das demandas da população”, pelo telefone 0800.081.3400, em ligação gratuita e 24h, e que, a partir do que for constatado, é feito um relatório e a Secretaria Executiva de Controle Urbano (Secon) pode ser acionada para notificar os responsáveis pelos imóveis a tomar as medidas exigidas. Em 2012, a pasta fez 1.894 vistorias em áreas planas da cidade, que identificaram 186 imóveis com risco alto (R3) e 116 com risco muito alto (R4) - que foram interditados até que os proprietários executassem os serviços recomendados. Os bairros com maiores quantitativos de risco muito alto foram Bairro do Recife (11), Boa Viagem, Santo Amaro, Santo Antônio e São José (9 em cada) e Boa Vista (7).

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Situação das marquises na Rua da Palma, no Bairro de São José, Centro do Recife - Alexandre Aroeira/Jc Imagem
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Situação das marquises na Rua da Palma, no Bairro de São José, Centro do Recife - Alexandre Aroeira/Jc Imagem
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Situação das marquises na Rua da Palma, no Bairro de São José, Centro do Recife - Alexandre Aroeira/Jc Imagem

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