Cria-se, usa-se, abandona-se e, então, destrói-se com a alegação de que “pior do que está, não fica”. A receita para o apagamento da memória arquitetônica da cidade se repete mais uma vez: após anos de discussões sobre qual seria o destino do antigo terminal do Aeroporto do Recife, na Imbiribeira, Zona Sul, que perece com o tempo, a escolha foi pela demolição do equipamento que deve virar, em breve, um estacionamento.
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No último ano, reportagem deste JC trouxe com exclusividade que tal possibilidade estava sendo pautada pela Aena Brasil - empresa espanhola que, ao arrematar em leilão o Aeroporto Internacional do Recife-Guararapes/Gilberto Freyre, ganhou também a responsabilidade de dar uso ao obsoleto terminal. À época, a Aena, entretanto, afirmou apenas que o espaço devia ganhar “novos usos”.
Agora, já é uma realidade. Está em fase final de aprovação pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o projeto que prevê que, no lugar do imóvel, seja construída uma “Estação de Transferência Intermodal”. É prevista uma cobertura metálica para abrigar 228 vagas: 158 para carros e motos de funcionários, 50 para transporte por aplicativo e 20 para vans e ônibus de turismo. A proposta já ganhou validação positiva de arquiteto do órgão.
Contra a solução apresentada, o Laboratório de Paisagem, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), enviou uma denúncia ao Ministério Público Federal (MPF), em 13 de setembro, que ainda a analisa. O documento, assinado pela professora Ana Rita Sá Carneiro e pelos pesquisadores Wilson de Barros e Jônatas Souza, alega que a “importância do prédio foi desconsiderada”.
Relação praça-edifício
Isso porque o imóvel concebido pelo arquiteto Arthur Mesquita em 1957 foi considerado um projeto modernista inovador, pensado junto à Praça Ministro Salgado Filho, um patrimônio nacional criado pelo paisagista mundialmente renomado Roberto Burle Marx. Sem praça, não existiria terminal, e sem terminal, não existiria praça. Sem ambos, há a perda de um espaço público e coletivo.
No século passado, o ponto era mais que um local de passagem, mas um atrativo cultural. Cidadãos se deslocavam até ele em busca da paisagem ao ar livre, dos brinquedos e para observar os aviões subindo e descendo: uma dinâmica quebrada em 2004, com a inauguração do novo aeroporto. Desde então, a praça e o terminal entraram em ruínas e perderam movimento.
Para os especialistas, derrubar o prédio trará ainda mais prejuízos ao jardim histórico. “A praça foi originada para ser um jardim do edifício, mas o aeroporto novo deu as costas para ela. O projeto que está em aprovação é absurdo em termos de paisagem, vai ofender tremendamente o patrimônio e prejudicar a preservação. As pessoas não vão usar a praça se não tiver relação com o equipamento”, afirmou.
"A aprovação da demolição do edifício do antigo aeroporto provocará uma série de impactos para a conservação da integridade e significância do jardim histórico, afinal foram concebidos como um conjunto de arquitetura moderna. É visível que atributos significativos estão sendo desconsiderados ao ponto de prejudicar a legibilidade do bem cultural e macular sua compreensão como obra de arte", diz o texto.
O Iphan alega que o prédio não é tombado, mas tido como “entorno da praça tombada”, e que, por isso, não pode definir o uso; mas que, caso demolido, é necessário haver em troca uma construção que mantenha a relação “funcional, espacial e paisagística” com a praça.
Obras de arte esquecidas
Em apoio ao pleito da UFPE, Carlos Fernando de Moura Delphim, um dos maiores especialistas nas obras de Burle Marx no Brasil, discordou, em carta enviada ao MPF, que o terminal proposto pela Aena mantenha tal relação. “Trata-se na verdade de um engodo, da erradicação da edificação em prejuízo do jardim tombado", rebateu.
O pleito dos especialistas é que o prédio, ainda que tenha sido descaracterizado por sucessivas reformas nos anos 80 e 90, seja mantido e aberto à população - retomando, assim, a relação entre ele e o jardim. Uma proposta é torná-lo um museu - já que o terminal já conta com diversas obras de arte que sofrem com a ação do tempo, como as Lula Cardoso Ayres (1910-1987).
Os coloridos painéis “Folclore" e "Ciclo Econômico" do artista pernambucano, que estão em processo de tombamento pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), apodrecem junto ao edifício. Pelas redes sociais, o historiador Leonardo Dantas Silva criticou o estado das obras.
"Acontece que o uso continuado do novo aeroporto, serviu para provocar o esquecimento e o abandono da velha estação de passageiros e a consumação do atentado às magníficas obras de arte nela existentes. Fato flagrante, que clama aos céus, é o atentado que vem sendo alvo os painéis de autoria do artista Lula Cardoso Ayres", afirmou.
No último ano, a Fundarpe notificou a Aena diversas vezes sobre o estado das obras, pedindo que fossem promovidas "ações emergenciais de preservação e proteção" a elas.
O que diz a Aena Brasil
"A Aena Brasil tem buscado todas as formas de dotar o Recife e Pernambuco de um equipamento aeroportuário de classe mundial, cumprindo as exigências do edital de concessão, assim como adotando medidas de proteção ao patrimônio histórico e meio ambiente.
As obras atuais concentram-se no atual terminal e em todo o sítio aeroportuário, visando preparar o aeroporto para o futuro, consolidando-o como um dos maiores do Brasil, e grande vetor de desenvolvimento da cidade e do estado. Para que isso possa ocorrer é importante dar qualidade a todos os espaços e conforto ao passageio. O equipamento está inserido na área urbana, e por isso a Aena já se comprometeu em restaurar conforme o projeto original de Burle Marx e adotar a Praça Salgado Filho, reformar jardins e calçadas à frente do aeroporto, e outros itens. Dentre eles, também a preservação dos painéis de Lula Cardoso Ayres que se encontram no antigo terminal, e que não podem ser removidos dali. O prédio do terminal é antigo, não é de preservação histórica, e sem uso desde 2004, tem sua estrutura extremamente comprometida. Não se adequa às necessidades de um equipamento moderno como o aeroporto do Recife precisa ser.
A Aena trabalhou num projeto de nova construção para a área, seguindo preceitos básicos indicados pelo IPHAN, e elaborou um plano em duas fases que está em análise pelo órgão. A primeira fase conta com um espaço intermodal, para integração de diferentes meios de transporte ao terminal, vagas adicionais para veículos de transporte, e inclui áreas de alimentação e de contemplação das obras de Lula Cardoso Ayres, que ali permanecerão protegidas e expostas ao público em geral. O volume do edifício visa justamente não ferir proporções que estejam em harmonia com a praça tombada. Numa segunda fase, haveria a adição de um pavimento para extensão da área de embarque de passageiros domésticos. Também nesta fase, consta do projeto apresentado ao IPHAN, para que se garanta mais uma vez que altura e volume sejam harmônicos com a praça tombada.
Dessa maneira, fica claro que a Aena está tomando todos os cuidados para que seus projetos estejam absolutamente dentro dos preceitos dos órgãos de proteção dos bens tombados, os painéis (FUNDARPE), e da praça Salgado Filho (IPHAN).
O que diz o MPF
"A denúncia da Aena foi juntada a inquérito civil já em andamento no MPF em Pernambuco, que apura notícia de demolição do antigo edifício do aeroporto do Recife, situado no entorno da Praça Ministro Salgado Filho, projetada pelo paisagista Roberto Burle Marx e tombada pelo Iphan. Embora essa denúncia específica ainda não tenha sido analisada, o MPF atualmente analisa documentação enviada pela Aena, recebida eletronicamente hoje (27), em resposta a ofício do MPF."
O que diz a Fundarpe
Informamos que a Fundarpe, por meio da Gerência Geral de Preservação do Patrimônio Cultural da Fundarpe – GGPPCult, continua, de forma sistemática, acompanhando as ações executadas pela AENA Brasil, nos Murais de Lula Cardoso Ayres, denominados “Folclore” e “Ciclo Econômico”, localizados no antigo terminal de passageiros do Aeroporto Internacional do Recife/Guararapes – Gilberto Freyre. No decorrer do ano de 2022, foram realizadas fiscalizações ao local, emissão de documentos técnicos e reuniões com os envolvidos no processo.
Em virtude da situação de vulnerabilidade que se encontram os Murais de Lula Cardoso Ayres, e devido à urgência na realização dos serviços de conservação e proteção dos referidos bens, em junho de 2022, a Fundarpe aprovou o “Projeto de Proteção das obras de arte de autoria do artista Lula Cardoso Ayres”, elaborado pela empresa J.E. Tinoco Restauração ME, onde foi recomendado que os serviços devem ser executados e acompanhados por profissional com vasta experiência na área, este mesmo profissional deverá capacitar previamente a equipe que realizará as ações. Na ocasião, foi solicitada para continuidade do processo de conservação e futura restauração dos murais, o envio do projeto da Estação de Transferência Intermodal, elaborada pela Colmeia Arquitetura e Engenharia Ltda.
A J.E. Tinoco Restauração ME informou que o serviço de proteção das obras de arte será iniciado nesta segunda-feira (3/10).
As mencionadas obras de arte são parte integrante do processo de tombamento estadual “dos painéis e pinturas murais do artista plástico Lula Cardoso Ayres, localizadas no Recife/PE”, Processo FUNDARPE n°802213-0/2012, cujo edital de abertura foi publicado, no Diário Oficial do Estado e no Diário de Pernambuco, em 13 de setembro de 2017 e, em edital complementar publicado no Diário Oficial do Estado e no Diário de Pernambuco, em 1º de novembro de 2019. Procedimento este em cumprimento aos ditames da legislação estadual, Lei nº 7.970/1979, que institui o Tombamento de Bens pelo Estado, regulamentada pelo Decreto n°6.239/1980. Com as publicações, fica assegurado o mesmo regime de bens tombados, até a conclusão do processo e inscrição definitiva no competente Livro de Tombo.
O que diz o Iphan
A reportagem do JC contatou o Iphan para obter um posicionamento sobre o projeto, mas não recebeu uma resposta até a publicação desta matéria. O espaço está aberto.
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