CARNAVAL 2023: músicos de orquestras driblam violência, caixas de som e atrasos de cachê pela tradição

Música é parte indissociável de uma das melhores festas de rua do mundo - e reverbera do suor de apaixonados pelo Carnaval de Olinda
Katarina Moraes
Publicado em 15/01/2023 às 8:00
Maestro Carlos Rodrigues comanda a orquestra que leva o seu nome e toca na saída do Homem da Meia-Noite Foto: MAESTRO CARLOS


O que faz do Carnaval de Olinda... o Carnaval de Olinda? Não sobram dúvidas que uma série de fatores fazem da festa da cidade uma das mais conhecidas do mundo: clima, folião, bonecos gigantes, blocos e troças são algumas delas. Mas se tem uma característica que transforma aquelas ladeiras em uma festa em qualquer época do ano, é a música - sobretudo que ecoa da tradicionais orquestras.

O frevo que vem do trompete, trombone, saxofone alto e tenor, requinta, tuba e percussão e que conseguem balançar o mais duro dos esqueletos é tocado por gente que enfrenta uma verdadeira maratona por amor à música. Se o período da folia de momo começa 47 dias antes do dia da Páscoa no calendário, para os que dele vivem, o Carnaval já dá as caras por meados de outubro.

São cerca de cinco meses de ensaios frequentes no Sítio Histórico da cidade pernambucana. “Parece um show, é gente demais assistindo”, contou Robson Leão, que agita blocos famosos de Olinda, como Ceroula, Elefante e Boi da Macuca. Mas a agenda aperta mesmo é com a virada do ano e, sobretudo, na semana pré-carnavalesca. A partir daí, a prioridade é fazer a alegria da galera.

As orquestras mais requisitadas chegam a tocar até 80 vezes em menos de 15 dias. Os músicos acordam por volta das 8h e só dormem às 3h da madrugada, emendando um bloco no outro. No final, até machucados aparecem na boca e nos dedos. “Ano passado cheguei a ficar tonto, mas comprei um chapéu para me proteger do sol e voltei”, disse Robson.

Quando perguntado se não se cansa daquela rotina, dispara: “o frevo não cansa. Só em morar em Olinda, já nasce no sangue”. Ele, como tantos, atesta a veracidade da frase, já que é filho de um dos maiores maestros da cidade: Oséas. E é junto ao pai que o também empresário coloca seu pandeiro para girar.

No meio da folia, a orientação é uma só: beber muita água. Quem quiser beber cerveja, que dê conta de acompanhar o ritmo e o sobe e desce das ladeiras com a mesma vitalidade dos demais. E quando a necessidade aperta, logo avisam - “maestro, vou ali tirar água do joelho”, enquanto os colegas cobrem o outro por um momento, segundo contou Carlos Rodrigues, que comanda a orquestra que leva seu nome.

As orientações são repassadas por meio de símbolos, já que não dá para se fazer ouvido entre milhares de pessoas cantando. “Faço um ‘C’ com a mão quando é para tocar o hino de Ceroula, o chapéu quando é o do Homem da Meia Noite, e um vai falando pro outro”, disse o maestro, atração principal no desfile do calunga, que abre a a festa na cidade.

Frevo de rua

O ritmo é antigo. Surgiu oficialmente em 9 de fevereiro de 1907 - apesar de já ser dançado bem antes disso - mas continua atraindo os corações juvenis. Robson disse que, décadas atrás, era até difícil ver os mais novos se interessarem pelo frevo, mas que hoje em dia estão procurando integrar as bandas.

A mudança aconteceu, para ele, por Olinda ter mostrado que suas músicas compassadas podem levar alegria por todo o ano. “São João virou um Carnaval aqui. Transformamos forró em frevo e todo mundo dança”.

Carlos começou na música de forma despretensiosa, em uma banda marcial no colégio, tocando percussão e estudando instrumentos de sopro, mas tornou a paixão pelo frevo chegou mesmo a ver o Homem da Meia-Noite sair da sede na Estrada do Bonsucesso à meia noite do Sábado de Zé Pereira. "Fiquei doido, imitando ele, e quis montar meu grupo. Aprendi música para fazê-lo dançar".

Passou a estudar no Conservatório Pernambucano de Música, depois a ensinar na Fundação Casa das Crianças e no Clube Vassourinhas - que o levou para longe; a mais de 8 mil km e a um Oceano Atlântico de distância da Marim dos Caetés, para ser mais precisa. Por três anos, na década de 90, fez os europeus descobrirem o ritmo do Estado em uma época ainda sem aplicativos de áudio.

Mas não aceitou deixar o calor do Estado durante o Carnaval - aí é demais. “Foi o que a música nos trouxe de bom, mas não queríamos deixar o carnaval de Olinda para lá, apesar de ser recompensador em dinheiro. Somos daqui, autenticamente carnavalescos. Ficaríamos lá só imaginando como estaria o Homem aqui. É diferente. Só de soltar um instrumento aqui, o pessoal já está pulando”.

Atrasos em cachês e violência no Carnaval

O município contrata orquestras para disponibilizar gratuitamente para troças e blocos ou para perambular pelas ruas durante a festa de momo; mas a burocracia fez com que ambas as orquestras deixassem de se cadastrar pelo poder público. Todos os anos, segundo eles, é necessário reconhecer a firma dos músicos, além do pagamento demorar meses para cair na conta.

Então, a preferência é pelo contrato direto com os blocos. “Com a Prefeitura passamos entre 5 a 6 meses sem receber, por isso não fazemos tanta questão. As orquestras mais famosas chegam a tocar 80 vezes, enquanto outras tocam 7. Também está muito barato tocar por lá; no último Carnaval queriam pagar R$ 2.200 por 12 músicos. Não vale a pena. Os particulares pagam R$ 200 por músico”, disse Robson.

“Já toquei várias vezes pela Prefeitura e acabei desistindo. Tenho que ter capital para pagar os músicos e só receber da Prefeitura no final do ano. Se tiver pouco espaço de tempo para fazer os cadastros, não consegue e fica saturado. Se fosse mais fácil, tocaríamos por lá”, comentou Carlos, que concluiu: “sempre toquei por lá, mas em 2020 não. Então, não recebemos os auxílios da pandemia. Tudo isso chateia”.

A falta de segurança pública tem sido um dos maiores desafios para Robson. “Tem bloco que bota segurança, mas não adianta. A quantidade é pouca e não dá para segurar. Já tiveram várias confusões; gente empurrando músico, pedimos para afastar e não se afastam, a pessoa fica braba e só falta querer dar no músico, mas o resto não deixa.”

Outro, o desrespeito de quem não entende que o suor que fez de Pernambuco a terra do frevo, não de caixas de som. “Se vem duas orquestras numa rua, ou as duas param, ou uma para e espera a outra passar. Mas às vezes o pessoal não está nem aí para desligar o som mecânico. É uma falta de consideração com quem toca o instrumento”, contou Carlos.

A Lei Municipal número 5.306, em vigor desde 2001, proíbe som acima de 70 decibéis durante o Carnaval, a fim de não prejudicar a passagem dos blocos tradicionais. Mesmo com multa de R$ 7 mil a R$ 14 mil, a fiscalização ainda é falha, segundo o maestro. “Na Cidade Alta, Carnaval é orquestra na rua. Som mecânico é para colocar no quintal de casa”, defendeu.

Mas nenhuma das dificuldades se comparou ao desafio que nunca imaginaram enfrentar: ver Olinda silenciosa durante dois anos da pandemia da covid-19. “Deu uma dor no coração”, desabafou Robson. Na dificuldade, alguns músicos deixaram o ofício que mais amam para garantir o sustento da família. “Esse ano estou lutando para cegar a 50 porque muitos foram sobreviver de outra coisa”, afirmou Carlos.

No regresso, em 2023, esperam que o “Adeus, adeus, minha gente / Que já cantamos bastante [...]”, como na Evocação Nº1 de Nelson Ferreira, volte a ser a uma despedida que dure apenas alguns meses, quando dão tchau já com o gostinho do início da preparação para o próximo ano, quando voltam a fazer as ladeiras tremerem.

O que diz a Prefeitura de Olinda acerca de reclamações sobre o Carnaval

A Prefeitura de Olinda se pronunciou sobre as reclamações feitas pelos músicos sobre os contratos de Carnaval. Leia a nota:

"A Prefeitura de Olinda, por meio da Secretaria de Patrimônio, Cultura e Turismo, esclarece que o cadastramento de orquestras é realizado através de processo online, proporcionando celeridade e desburocratização, com a divulgação de edital público e a máxima transparência em sua execução. Para o Carnaval 2023, as inscrições foram iniciadas em novembro e prorrogadas até 15 de dezembro do ano passado. Todo o trâmite atende aos critérios previstos na legislação, comum aos demais municípios, incluindo a apresentação da respectiva documentação padrão das agremiações.

A gestão ressalta o estímulo para a participação do setor, já que a totalidade dos inscritos é oriunda da própria cidade, valorizando a arte e cultura locais. A definição do quantitativo de orquestras (blocos e itinerantes) só é realizada após o devido fechamento da programação de cortejos. A estimativa de conclusão é até a primeira semana de fevereiro. No tocante aos prazos, informamos que o pagamento é decorrente da prestação de contas dos próprios responsáveis interessados. A quitação dos músicos contratados é iniciada a partir de 30 dias do fim do ciclo, seguindo um cronograma da Secretaria da Fazenda."

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