Governo tem poder para impor vacina da covid-19; STF discute

Declaração do presidente Jair Bolsonaro, de que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina", contraria a Constituição
Agência Estado
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Publicado em 03/09/2020 às 7:37
A previsão do governo de São Paulo é de que haja 46 milhões de doses até dezembro deste ano Foto: HANDOUT/AFP


O governo tem poder para exigir a vacinação, e a declaração do presidente Jair Bolsonaro, de que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina", contraria a Constituição, na opinião de especialistas em Direito e Saúde Pública ouvidos pelo Estadão. Uma discussão sobre a obrigatoriedade de pais imunizarem crianças está em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF).
A declaração de Bolsonaro foi feita para apoiadores no Palácio da Alvorada, após uma simpatizante pedir que o presidente não deixasse fazer "esse negócio de vacina" porque era "perigoso". Em seguida, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) reproduziu no Twitter a fala do presidente. A imagem de Bolsonaro acenando para apoiadores do alto da rampa do Palácio do Planalto acompanha a mensagem "o governo do Brasil preza pelas liberdades dos brasileiros".
"O governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina. Recursos para Estados e municípios, saúde, economia, tudo será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos", diz a publicação da Secom.
Para Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a declaração de Bolsonaro "fere claramente norma expressa na Constituição", que determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença.
"Se há ordem para que o Estado viabilize políticas que possam reduzir o risco de doenças, ele (o presidente) está impedido de fazer algo contrário a isso. Quando põe em dúvida a obrigatoriedade da vacina, desincentiva ou pratica um ato como esse, eximindo as pessoas de uma obrigação coletiva - o que coloca em risco a saúde da população como um todo -, ele está indo expressamente contra essa previsão constitucional."
Além disso, quando diz que "ninguém pode obrigar ninguém a se vacinar", contraria lei sancionada por ele próprio, na opinião de Dias. Em fevereiro, Bolsonaro sancionou lei que permite a vacinação compulsória como forma de enfrentar a pandemia do coronavírus. "Há uma determinação legal no sentido de considerar a vacinação como algo obrigatório. Isso na lei específica da covid, mas há outras previsões no ordenamento jurídico que já fazem isso", diz o professor de Direito.
Dias cita o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e até a legislação do bolsa família, que condiciona o recebimento da prestação à vacinação das crianças. "Pode-se restringir direitos se aquela obrigação não for cumprida. O legislador deve privilegiar a saúde pública."
Esta sanção pode ocorrer de várias formas e em diferentes esferas (municipal, estadual ou federal). Podem ser criadas, por exemplo, restrições de viagens para quem se recusa a receber o imunizante. "Pode haver regras específicas para o caso da vacinação da covid, mas a obrigatoriedade já existe."

Determinação

Ontem, após repercussão da fala de Bolsonaro, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse que "a vacina tem de ser uma decisão pessoal de cada um, mas uma obrigação, uma determinação do Estado".
O secretário executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco Filho, falou ontem que a pasta incentivará a vacina da covid-19 para a imunização da população e volta da normalidade, mas ressaltou que não haverá obrigatoriedade. "Incentivaremos a vacina para a imunização da população. Mas lembramos também que a vacina não é obrigatória, mas vai ser um grande instrumento para que voltemos a nossa normalidade, dentro da sociedade, dentro da capacidade produtiva e dentro da educação", disse.
Para Juliana Hasse, presidente da Comissão de Direito Médico e de Saúde da OAB-SP, seria necessário um outro ato normativo, além da lei sancionada em fevereiro, para instituir a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19. "O governo não tem obrigação de tornar obrigatório. E, para tornar, teria de ter um outro ato normativo, uma lei." Caso seja necessário, porém, o Estado tem poder de polícia.
O médico sanitarista e advogado membro do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa), Daniel Dourado, pondera que essa discussão sobre a vacina deve ser posterior à aprovação de um imunizante no País. Para ele, as regras de vacinação só poderão ser determinadas após o conhecimento das características da vacina, como a eficácia. A partir disso, seriam determinados os grupos prioritários e obrigatórios, como acontece com a gripe.
Se crianças e adolescentes forem considerados grupos prioritários, por exemplo, o ECA já determina ser "obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias". Caso não o façam, pais e responsáveis podem levar multa e até perder a guarda.

Supremo

Antes mesmo da polêmica em relação à vacina contra a covid-19, o debate sobre a obrigatoriedade da imunização já havia chegado ao Supremo Tribunal Federal (STF), que deve decidir sobre a possibilidade de os pais deixarem de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais.
O julgamento, com repercussão geral, é sobre o caso de uma criança de 5 anos. O Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação contra os pais de um menino para obrigá-los a seguir o calendário de vacinação. Os pais são adeptos da filosofia vegana e contrários a intervenções medicinais invasivas.
O argumento era de que o bem da criança estava acima da vontade da família. A Justiça negou, tendo como fundamento a liberdade dos pais de guiarem a educação e preservarem a saúde dos seus filhos, mas o Tribunal de Justiça reverteu, determinando, em caso de descumprimento da decisão, a busca e apreensão da criança para a regularização das vacinas obrigatórias.
Decisões favoráveis para que os pais não sejam obrigados a vacinar os filhos são casos pontuais e partem de uma interpretação equivocada do juiz, na opinião de Dias. 
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