da Agência Brasil e Estadão Contaúdo
Com 45% dos assentos renovados, a nova Câmara dos Deputados terá no topo da lista de afazeres a reforma tributária, que funciona como prova de fogo do governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Especialistas ouvidos pelo Estadão disseram acreditar que o desafio ao Congresso será atuar de maneira propositiva na agenda econômica, sem ficar refém de "pautas-bomba" que, segundo eles, costumam reger parte da atuação dos parlamentares.
"Por onde você olha, as prioridades para resolver os problemas mais graves no Brasil ou fazer o País se reencontrar e voltar a crescer exigem medidas econômicas cada vez mais complexas. Nós, dificilmente, estaremos livres da predominância dos projetos econômicos na pauta do Congresso", disse o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega.
Para ele, no primeiro ano, os parlamentares devem se concentrar em ações relacionadas à produtividade e ao arcabouço fiscal. "Se não for isso, não vão enfrentar os problemas cuja solução dependem o crescimento do País e a redução da pobreza. Enfrentar a grave situação fiscal que pode nos encaminhar para uma crise de dívida pública, com repercussões graves, não vai ser uma tarefa fácil, e ela foi tornada mais difícil com a PEC da transição", disse.
Segundo o ex-ministro, o governo tem maioria para aprovar a legislação necessária para estabelecer o arcabouço fiscal, mas vai depender de articulação.
Reforma tributária dividida em duas fases
A simplificação da tributação sobre o consumo está no centro da primeira fase da reforma tributária, que o governo pretende enviar ao Congresso neste semestre.
Segundo declarações recentes do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o texto pretende se basear em duas propostas de emenda à Constituição (PEC) em tramitação no Congresso, e o governo poderá acrescentar ou retirar alguns pontos.
As duas propostas reúnem diversos tributos que hoje incidem sobre o consumo em menos tributos. A divergência está no número de tributos unificados e na forma como ocorrerá a fusão.
PEC 45/2019
De autoria do deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP), a PEC 45/2019 foi relatada pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), ambos reeleitos no ano passado.
O relatório chegou a ser lido na comissão especial da Câmara dos Deputados para a reforma tributária, mas teve a tramitação suspensa após o presidente da Câmara, Arthur Lira, extinguir o colegiado, alegando que o prazo de funcionamento foi extrapolado por causa da pandemia de covid-19.
A PEC 45 prevê a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O tributo substituiria duas contribuições – o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) – e três impostos – o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços (ISS). Atualmente, as contribuições ficam inteiramente com a União, o IPI é partilhado entre União e governos locais, o ICMS fica com os estados; e o ISS, com os municípios.
A alíquota do IBS seria composta por uma soma das alíquotas da União, dos estados e dos municípios. Cada esfera de poder poderia definir a alíquota por meio de lei ordinária. A base de cálculo (onde o tributo incide) seria regulamentada em lei complementar.
Também seria criado o Imposto Seletivo, que incidiria sobre o consumo de produtos que causam danos à saúde, como cigarros, álcool e derivados de açúcar.
Esse imposto seria cobrado "por fora", no início da cadeia produtiva, incorporando-se ao custo do produto e elevando a base de cálculo sobre a qual é aplicada a alíquota do IBS.
A PEC também prevê a cobrança do IBS no destino, no estado onde a mercadoria é consumida. Isso acabaria com a guerra fiscal entre as unidades da Federação.
Haveria um prazo de transição de seis anos para a adoção do IBS, com a extinção do PIS e da Cofins nos dois primeiros anos e a redução gradual das alíquotas do ICMS e do ISS nos quatro anos restantes.
O relatório apresentado na época previa poucas mudanças na tributação sobre a riqueza, com "alterações pontuais" para reforçar a progressividade (cobrança sobre os mais ricos) do Imposto Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), que incide sobre heranças e doações, e do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).
O texto também prevê a manutenção da Zona Franca de Manaus e do Simples Nacional, regime especial para micro e pequenas empresas.
PEC 110/2019
Apensada a uma proposta de reforma tributária paralisada no Senado desde 2004, a PEC 110/2019 foi apresentada na Casa em 2019, mas só teve o parecer lido dois anos mais tarde. Relatado pelo senador não reeleito Roberto Rocha (PTB-MA), o texto cria dois tributos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que ficaria com a União, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
Pela proposta, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) substituiria a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), o Programa de Integração Social (PIS) e o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep). O Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) substituiria o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), arrecadado pelos estados, e o Imposto sobre Serviço (ISS), de responsabilidade dos municípios. A proposta não unificou o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) e o salário-educação no novo tributo federal.
Em relação ao IBS, o texto propõe uma lei complementar única para os 26 estados, o Distrito Federal e os municípios, porém traz mais flexibilidade aos governos locais. Cada ente público poderia fixar a alíquota do IBS, que seria a mesma para bens e serviços.
A cobrança seria no destino, no local onde a mercadoria foi consumida, com um prazo de transição de 20 anos.
A lei complementar poderia manter benefícios fiscais para vários setores da economia, mas as medidas seriam definidas nacionalmente, não a critério de cada estado ou município.
A Zona Franca de Manaus, o Simples Nacional, as Zonas de Processamento de Exportação e o regime especial para compras governamentais (compras feitas pelo governo) seriam mantidos.
O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) seria substituído pelo Imposto Seletivo, que incidiria sobre bebidas alcoólicas, derivados do tabaco, alimentos e bebidas com açúcar e produtos prejudiciais ao meio ambiente. Assim como ocorre no IPI, a União arrecadaria o imposto, destinando parte das receitas aos estados e aos municípios.
A isenção sobre os produtos da cesta básica acabaria. Em troca, seria feita uma devolução dos tributos que incidem sobre esses bens a famílias inscritas no Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).
Em relação aos impostos sobre o patrimônio, o relatório institui a cobrança de IPVA para veículos aquáticos e aéreos, como iates, jet skis e jatinhos.
Em contrapartida, isentaria o transporte público, o transporte de cargas, barcos de empresas de pesca artesanal e de populações aquáticas e ribeirinhas. O Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) teria a base de cálculo atualizada pelo menos uma vez a cada quatro anos
Imposto de Renda
As duas propostas preveem a reformulação dos tributos sobre o consumo, sem interferir na tributação sobre a renda. Durante o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, o ministro Haddad afirmou que pretende discutir a simplificação dos tributos sobre o consumo no primeiro semestre e deixar a reforma do Imposto de Renda para o segundo semestre.
As eventuais mudanças no Imposto de Renda envolveriam o retorno da tributação de dividendos (parcela do lucro das empresas passadas aos acionistas), em troca da diminuição do Imposto de Renda Pessoa Jurídica e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Desde 1995, os dividendos no Brasil são isentos de Imposto de Renda.
Outra possível mudança, sinalizada recentemente pelo presidente Lula em reunião com centrais sindicais, seria a elevação da faixa de isenção do Imposto de Renda. Sem correção desde 2015, a tabela isenta apenas quem ganha R$ 1.903,98 por mês.