O abaixo-assinado de alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) contra a volta de Janaína Paschoal à instituição reacendeu um debate sobre pluralidade democrática e o espaço dado à divergência na esfera pública.
Integrantes do Centro Acadêmico XI de Agosto, entidade de representação dos estudantes, afirmam que Janaina Paschoal "não cabe" no corpo docente da faculdade e a acusam de ser uma "detratora" da democracia no País.
Professores, porém, saíram em defesa de Janaina Paschoal, que perdeu a disputa ao Senado e argumentaram que vetá-las fere liberdades constitucionais.
Casos como o da deputada Janaina Paschoal, que foi autora do pedido de impeachment de Dilma Rousseff (PT), se tornam frequentes no mundo da política.
No ano passado, integrantes do partido Novo foram impedidos de dar uma palestra na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A previsão era que eles participassem de um evento sobre financiamento público e cotas raciais, mas alegam ter sido expulsos do campus por alunos do Diretório Central dos Estudantes (DCE).
Ao mesmo tempo, discursos de intolerância levantam dúvidas sobre o limite do aceitável para se garantir a pluralidade.
Em 2019, também na Faculdade de Direito da USP, o professor Eduardo Lobo Botelho distribuiu um texto exaltando a cultura "euro-brasileira", chamando casais do mesmo sexo de "aberração" e classificando minorias como "escrófula da sociedade".
O professor Floriano de Azevedo Marques Neto, ex-diretor da instituição conhecida como Arcadas, afirmou ao Estadão que determinados discursos não devem e não são tolerados na instituição, como os que pregam o crime de racismo.
Situações como a de Botelho, porém, não podem ser confundidas com a simples defesa de determinadas concepções políticas que não ultrapassam a linha do inaceitável. "Eu posso ter concepções que, se não passarem do limite do ódio, são discordáveis, mas não me inabilitam para o debate. A divergência fomenta a melhoria da discussão pública", afirmou.
O conceito de "cancelamento" é comum entre celebridades na internet e ocorre não apenas no Brasil, mas também em outros países. Na lógica do fenômeno, famosos que se portam de maneira repreensível na visão dos usuários merecem ser punidos com boicote. A ideia é excluí-los da vida pública e impedir que continuem a carreira, seja ela qual for. A prática, que no início afetava principalmente blogueiros e artistas, passou a alcançar políticos e empresas.
Na prática, é como uma "condenação" sem as prerrogativas básicas da Justiça, como a presunção de inocência e o direito à ampla defesa.
Segundo Azevedo, o cancelamento é mais grave quando ocorre no ambiente da Faculdade de Direito, que, segundo ele, foi construído com a premissa da liberdade de debate. Ele ressaltou, ainda, que o "cancelamento" nunca é de ideias, de fato, mas de pessoas, marcado pela personificação de um inimigo e a necessidade de marcá-lo e condená-lo.
"Estamos perdendo a capacidade de ouvir quem pensa diferente, e isso é voltar no tempo, para o período inicial da Idade Média. Porque na segunda parte da Idade Média surge a universidade, justamente para ser esse ambiente de dialogar o diferente", disse Azevedo.
O filósofo Filipe Campello, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirmou que demonstrar resistência a uma opinião política é saudável para a democracia. Não há nada errado que certas posições sejam alvo de críticas, pois o direito à manifestação é uma garantia constitucional. "Mas, se o objetivo do abaixo-assinado for vetar Janaina Paschoal de reassumir a cátedra, isso já entra em um terreno nebuloso do campo democrático. Ainda que existam divergências, é perigoso para a pluralidade democrática impedir que as pessoas manifestem sua concepção política", afirmou.
Campello propõe cautela para não cometer a atitude que está se querendo criticar. Até que ponto, ele pondera, inserir outra pessoa no rótulo "autoritário" e querer excluí-la da esfera pública pode ser em si uma postura autoritária? "Ninguém tem a solução final", disse. "Então, é melhor assumir o conflito, a tensão, a pluralidade das posições, que é o que garante de maneira menos arriscada a sobrevivência do jogo democrático."
Em resposta aos desdobramentos do abaixo-assinado, integrantes do XI de Agosto publicaram um artigo justificando a objeção à professora. Os estudantes invocaram o conceito do paradoxo da tolerância, elaborado pelo filósofo Karl Popper no século passado. Segundo o autor inglês, os intolerantes devem deixar de ser tolerados pelo bem da própria democracia. Na prática, os alunos argumentaram que não se deve aceitar na esfera pública aqueles que são contra a democracia e o Estado de Direito. "Nas Arcadas não devem caber todos os seus professores", disseram.
Janaina formulou, ao lado de Miguel Reale Junior, a peça jurídica que deu base para a abertura do processo de impeachment de Dilma. Posteriormente, apoiou a eleição de Jair Bolsonaro (PL), ex-presidente que, durante o seu mandato, instigou apoiadores a questionar, por exemplo, o processo eleitoral brasileiro.
A deputada estadual se afastou da retórica bolsonarista ao longo do último ano e condenou o extremismo em diversas ocasiões. Ao Estadão, em novembro, quando apoiadores do ex-presidente acampavam na frente de quartéis pedindo golpe militar, ela disse considerar "irresponsável" que o então governo insuflasse a população com a tese de fraude nas urnas eletrônicas. Nas redes sociais, Janaina fez apelos para que os extremistas fossem para as suas casas e chegou a dizer que Bolsonaro estava "instrumentalizando" os manifestantes para fins pessoais.
O "cancelamento político" pode ser visto como um sintoma da cisão social que afeta o País. Segundo o cientista político Carlos Gadea, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro, deu sinais positivos, mas irreais da conjuntura brasileira.
Enquanto a divisão política pode ser notada no dia a dia das instituições, como na Faculdade de Direito da USP, o petista subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado de representantes da sociedade civil, indicando união e pacificação, e afirmou que "não existem dois Brasis".
"A cultura política do País não se refletia, na sua complexidade atual, naquela cerimônia da posse, nem nos acontecimentos dos dias posteriores, quando a designação de cargos a ministérios dava a entender que se vivia em uma sociedade pacificada, socialmente tolerante, sem ressentimentos sociais e com sólida absorção dos valores democráticos", afirmou Gadea. O próprio presidente Lula faz reiteradamente discursos que dividem a sociedade.