O Congresso deflagrou uma manobra para driblar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aumentar as chamadas emendas PIX e diminuir o orçamento dos ministérios. A operação põe o dinheiro direto no caixa das prefeituras, sem interferência dos ministros, e pode chegar a R$ 10 bilhões somente neste ano.
Com a emenda PIX, o prefeito recebe os repasses antes mesmo de qualquer compromisso e faz o que quer com o montante. Na prática, são os gestores municipais que pressionam os congressistas a direcionar cada vez mais verba a essa modalidade, nebulosa para quem fiscaliza os recursos públicos.
O município não é obrigado a informar em que vai aplicar os valores nem para onde foram os recursos depois de gastos. É diferente do que ocorre com outros tipos de emendas, só enviadas quando as obras são efetivamente entregues. Além disso, passam por exigência de programas, atestados técnicos, licenças ambientais e pente-fino dos órgãos de controle.
A articulação do Congresso pode retirar dinheiro da assistência social, do combate às drogas, do tapa-buraco de rodovias e de bolsas de pesquisa em universidades, por exemplo. São recursos que já foram indicados pelos parlamentares e estavam na programação dos ministérios. De acordo com levantamento do Estadão, as áreas passíveis de perder mais verba para as emendas PIX são assistência social e educação, com R$ 565 milhões e R$ 518 milhões sob risco, respectivamente.
Na semana passada, cerca de 3 mil mandatários municipais estiveram em Brasília para participar da Marcha dos Prefeitos e aproveitaram a estadia para fazer um périplo pelos gabinetes de deputados e senadores, em busca de dinheiro. Pediram prioridade às emendas PIX, pois, com esse sistema, o recurso chega mais rápido e não há obstáculos em órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU), que fiscaliza as transferências federais, e nem na Caixa, que cobra taxas pelo monitoramento das obras.
"Os prefeitos, coitados, estão quase que rejeitando as verbas (se não forem emendas PIX) porque demoram e eles não conseguem executar as obras", afirmou o deputado Hercílio Coelho Diniz (MDB-MG), que indicou R$ 8 milhões na modalidade direta para municípios de Minas Gerais.
Prefeitos e congressistas defendem o uso da emenda PIX porque o repasse é mais rápido e sem burocracia, mas especialistas apontam falta de transparência e de fiscalização, o que abre margem para desvios. Como mostrou o Estadão, o dinheiro já foi usado para bancar shows de artistas sertanejos em cidades que não ofereciam nem mesmo serviços básicos para a população. A verba também irrigou a realização de festas no carnaval deste ano.
Com a emenda, o recurso fica desvinculado de qualquer política pública, como a erradicação da pobreza e a alfabetização de crianças, metas vinculadas a programas do governo. "Se você abre mão dos principais instrumentos de planejamento estratégico, você passa a pensar política pública de forma desarticulada. Não parece isonômico nem democrático", disse o cientista político Vítor Sandes, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
A emenda PIX foi criada em 2019 e passou a ser paga no ano seguinte. Em quatro anos, caiu nas graças de deputados e senadores. Tecnicamente, o repasse é chamado de "transferência especial". Em 2020, esse tipo de emenda somou R$ 621 milhões e atendeu 137 parlamentares. Para 2023, o valor aprovado pelo Congresso saltou para R$ 6,7 bilhões, turbinado pela Proposta de Emenda à Constituição da Transição. Neste ano, 507 congressistas (85% do total) já indicaram repasses nessa modalidade.
Em troca da PEC da Transição, o governo Lula e o Legislativo negociaram o aumento das verbas de maior interesse. As emendas PIX pularam de R$ 3,8 bilhões para R$ 6,7 bilhões. Agora, podem subir ainda mais. O governo abriu um prazo, até o próximo dia 13, para que deputados e senadores alterem as emendas que serão repassadas neste ano. Eles podem tirar o dinheiro vinculado aos ministérios e repassá-lo para a modalidade especial. Só não podem mexer nos valores destinados à Saúde.
Há cobrança para que o governo Lula desembolse os valores rapidamente. O Planalto já se comprometeu a pagar R$ 1,7 bilhão em emenda PIX que virou "dívida" do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas ainda não apresentou um cronograma das indicações de 2023.
Em busca de um novo arcabouço fiscal e de mais espaço para investimentos, o governo expõe preocupações com a emenda PIX, que tira do Executivo o poder de escolher para onde enviar o dinheiro. Ao Estadão, a Secretaria de Relações Institucionais informou que vai incentivar a apresentação de projetos para uso dos recursos, mesmo que a emenda não tenha finalidade definida.
Sob comando do ministro Alexandre Padilha, a SRI editou uma portaria determinando que o município informe a política pública na qual o dinheiro será gasto e prometeu "ampla transparência". A regra, no entanto, não muda a essência desse tipo de transferência, ou seja, algo totalmente fora do controle do governo.
"O uso desses recursos ocorrerá de maneira republicana, transparente e de acordo com as prioridades da população brasileira - o fim da pobreza, a melhora dos serviços públicos e a retomada do emprego e do crescimento econômico", diz trecho de nota enviada pela SRI. Os ministérios que podem perder dinheiro para a emenda PIX não responderam ao Estadão.
Quem está à espera da verba não esconde a relação direta entre o pagamento e o apoio político ao governo Lula, que ainda não conseguiu formar uma base aliada no Congresso com garantia de votos para aprovar projetos de interesse do Planalto.
"Quando ele (governo) se compromete a pagar, é positivo para os prefeitos e uma sinalização de que as coisas começam a acontecer", afirmou o deputado Cleber Verde (Republicanos-MA), que indicou R$ 13,9 milhões em emendas PIX neste ano para o Maranhão.
Na última semana, o TCU julgou um processo sobre as emendas PIX e decidiu que a fiscalização dos recursos na ponta caberá aos tribunais estaduais e municipais. Havia uma dúvida sobre quem deveria fazer o pente-fino.
Nos Estados e municípios, os tribunais são compostos por parentes e amigos de governadores, parlamentares e prefeitos. O TCU, por sua vez, vai exigir que as prefeituras digam o que pretendem fazer com os valores e como cumprir os requisitos da Constituição para esse tipo de emenda, ou seja, destinar 70% dos recursos para investimentos e não usar a quantia para pagar funcionários e dívidas do município.
Na avaliação de especialistas, as prefeituras podem facilmente descumprir os requisitos, pois o dinheiro é repassado antes da entrega de qualquer obra e, ao não ter "carimbo", se mistura a outras quantias no caixa.
"Quando há menos transparência, há uma possibilidade maior de que o ilícito seja praticado", disse Vítor Sandes. "Quando a emenda é mais amarrada, é possível rastrear o recurso", completou ele.