Há 25 anos morando em São Paulo, o cineasta pernambucano Heitor Dhalia atirou em muitas direções. Em sete longas, embarcou em dramas familiares (À Deriva), superproduções (Serra Pelada), adaptações literárias (Nina e O Cheiro do Ralo), documentários (On Yoga: Arquitetura da Paz) e até numa barca furada (a produção americana 12 Horas, que ele renega). Depois dessas tentativas, Heitor acertou em cheio e acaba de fazer o seu melhor filme, o enérgico e contundente Tungstênio, que estreia hoje em circuito nacional (no Recife, entra no Cinépolis Guararapes, no Cinemark RioMar e nos Kinoplex Recife, Plaza e Tacaruna).
Tungstênio vem embalado na fama de sua fonte original, a graphic novel homônima de lavra do fluminense Marcello Quintanilha, que desde 2014 ganhou o título de obra quadrinística brasileira mais conhecida mundo afora. Quem gosta de quadrinhos e leu a graphic novel vai amar. A transposição de Heitor é quase ao pé da letra – ou melhor, ao pé do desenho, da narração e dos diálogos escritos por Quintanilha. A fidelidade do cineasta ao original é canina.
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“Eu queria realmente que o filme tivesse uma cara de quadrinhos, que ele não negasse sua origem. Como é uma situação cotidiana, uma crônica, um retrato das tensões sociais da periferia brasileira – especialmente da Cidade Baixa, em Salvador – eu poderia ter outro olhar. Mas essa trama prosaica, quase banal, tem outras riquezas, como a prosódia e a construção do espaço-tempo que os quadrinhos propõem – uma história com flashback e flashforward, ação em tempo contínuo, misturadas aleatoriamente com quatro personagens em que cada um está num tempo narrativo diferente. Isso é é genial”, aponta Heitor, numa conversa por telefone.
Em menos de cinco minutos o espectador perceber que Heitor estava querendo fazer um crossover radical entre HQs e cinema. No primeiro encontro entre o ex-militar Seu Ney (José Dumont) e o jovem traficante Caju (Wesley Guimarães), o confronto entre os personagens acontece pelo nível imagético, a partir do uso marcante dos ângulos de baixos (contra-plongée). O grafismo marcante se evidencia ainda mais quando o narrador onisciente (voz de Milhem Cortaz), introduz o policial Richard (Fabrício Boliveira) e sua mulher, Keira (Samira Carvalho), que brigam e transam com a mesma vontade.
“Filmamos com uma 12mm, uma lente super radical, que distorce a realidade. Acho que Tungstênio conta uma história esgarçada pelas tensões sociais, a violência, a banalidade e a falta de recursos. Ao mesmo tempo, o filme suga o espectador para dentro da câmera, para uma narrativa que é vertiginosa e caótica. Foi isso que tentei fazer com a câmera, com as contra-plongée e uma inspiração muito leve do Cinema Novo, que filmou muito a Bahia e era delirante”, explica o cineasta.
Tungstênio é uma história policial negra, comprimida em menos de um dia na periferia de Salvador, tendo o Forte de Monte Serrat como único cartão de visitas. A ação se passa num corre-corre frenético, com Richard indo prender dois homens que usam dinamite para matar peixes (um deles é o pernambucano Pedro Wagner, do coletivo Magiluth), enquanto Caju tentar se vingar de Seu Ney, e Keira, entre lembranças boas e más, dispara enlouquecida para reencontrar o marido, nem sei saber porque. Como um turbilhão, o filme é um avalanche palavras, tiros, e gritos de dor e de prazer.
Um neorrealista dos quadrinhos
Lançada em 2014 pela editora Veneta, Tungstênio é, sem dúvidas, a novela gráfica brasileira mais elogiada pela crítica especializada nos últimos anos. Tendo vencido o prêmio Polar de melhor história policial no Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, em 2016, foi a grande responsável por projetar seu autor, Marcello Quintanilha, no cenário global.
A obra, em si, já é tida como cinematográfica. Pela narrativa bem ritmada, pelos diálogos realistas e pelo excelente uso de flashbacks. Sendo assim, é mais do que justo que seja também de Quintanilha a primeira versão do roteiro para o cinema. “Acompanhei as filmagens em Salvador por uma semana e tive muitas conversas com o Heitor (Dhalia). Posso dizer que a adaptação foi fiel como um conceito. É algo muito mais profundo do que simplesmente adaptar ângulos ou cenas”, afirma, comentando estar “absolutamente maravilhado pela forma como os atores dão voz e vida aos personagens”.
Tungstênio, todavia, não é a primeira obra de Quintanilha a ser adaptada. “Um exemplo que me fascina é a adaptação para o teatro de Escola Primária, uma história publicada no livro Sábado dos Meus Amores. Foi feita por Felipe Hirsch para uma peça chamada de A Tragédia Latino-Americana”, lembra.
Foto: Divulgação / Veneta
Nascido e criado em Niterói, Quintanilha mora em Barcelona há cerca de 15 anos. A distância, contudo, nunca impediu que ele retratasse a brasilidade em sua mais pura essência. “Todas as minhas histórias partem muito da experiência pessoal. Daquilo que eu pude presenciar em primeira pessoa, daquilo que vivi e do que pessoas próximas a mim viveram”, comenta.
E foi durante uma viagem a Salvador que surgiu a ideia do enredo da HQ, construída sem um roteiro prévio, ao longo em que os desenhos e páginas eram desenvolvidos e os personagens passavam a assumir as rédeas da história. “Em 2004, eu passei duas semanas em Salvador para a produção de um livro sobre a cidade. Nisso, adquiri o costume de ouvir a rádio local. Até que um dia ouvi uma notícia de que dois pescadores ‘dinamiteiros’ tinham sido presos por um policial à paisana”, conta.
Ainda conforme Quintanilha, essa notícia não trazia muitos detalhes, mas antes mesmo de que ele pudesse se dar conta, já estava fabulando os entrelaces da história. E assim nasceu Tungstênio, cujo título é uma metáfora a respeito da “relação das pessoas com o metal das circunstâncias, se elas vão ser capazes de dobrar, de abrandar ou de atravessar esse metal”.
É impressionante quando se leva em conta que o quadrinista passou pouquíssimo tempo em Salvador, mas ainda assim foi capaz de criar uma narrativa muito verossímil, com cenários verídicos e personagens com trejeitos próprios da região. Não é à toa que ele é considerado um Roberto Rossellini tupiniquim. “O neorrealismo italiano me interessa muito. A Nouvelle Vague também. Essa coisa de introduzir cenas reais na ficção, como o próprio Rossellini fez em Roma, Cidade Aberta... Eu acho isso magnífico.”