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Os dez anos da morte do detetive literário Roberto Bolaño

O autor chileno morreu como um desconhecido no Brasil e hoje é um dos mais celebrados escritores no País e no mundo

Diogo Guedes
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Publicado em 15/07/2013 às 6:00
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O autor chileno morreu como um desconhecido no Brasil e hoje é um dos mais celebrados escritores no País e no mundo - FOTO: Reprodução
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Há exatos dez anos, no dia 15 de julho de 2003, uma curta notícia notícia no jornal Folha de S. Paulo fazia um registro: morrera o escritor chileno Roberto Bolaño, em Barcelona, devido a complicações hepáticas. Da sua obra, apenas menções ao Prêmio Rómulo Gallegos e à sua obra incompleta, 2666, ainda que o autor já fosse um dos nomes mais incensados da literatura em língua espanhola no mundo.

O Brasil, na sua habitual cegueira para a literatura latino-americana, não tinha nenhum livro do autor traduzido à época, principal motivo do registro frio – a morte fora noticiada pelo diário espanhol El País como a de “um grande renovador da literatura”. “Quando Bolaño faleceu, praticamente só era conhecido no Brasil através da mídia estrangeira”, conta o tradutor do autor no Brasil, Eduardo Brandão.

Foi a partir das edições brasileiras, especialmente a de Os detetives selvagens, que a obra do autor ganhou ares da chamada “bolañomania”. “Duvido que ele gostasse do termo, talvez desse sonoras gargalhadas”, diz o tradutor. Hoje, ao redor do mundo, Bolaño é um verdadeiro fenômeno literário: em Barcelona recebeu neste ano uma grande exposição, Arquivo Bolaño, com manuscritos inéditos, vídeos e imagens sobre sua vida e obra.

O crítico literário e editor Schneider Carpeggiani, que fez doutorado em Letras sobre o chileno, pôde visitar a mostra. “Seria muito bom se essa exposição entrasse em turnê, algo como um relicário na estrada para encontrar seus fiéis. Afinal, o bolañismo é um culto em ascensão em escala global, como certas igrejas”, compara.

Para ele, o falecimento precoce colocou “uma lente de aumento” diante da vida e da obra de Bolaño. “A morte é o melhor agente literário”, define. “Ela ajuda a criar mitos porque somos fascinados por ausências. Diante da morte do outro, só podemos interagir a partir dos nossos próprios fantasmas, seguindo alguém que não se mexe – existe algo mais ‘Bolaño’ do que isso? Se tivesse falecido hoje, seu obituário seria maior, mas talvez menos fascinante. Não costumamos perdoar os que sobrevivem”.

O escritor e professor de Teoria Literária na Unicamp Eduardo Sterzi imagina que hoje os obituários seriam mais enfáticos. “Mas provavelmente, também, ainda mais equivocados, porque, agora que Bolaño é bem mais conhecido, também são mais conhecidas as falsidades e imprecisões que se colaram à sua figura: o suposto vício em heroína, o relevo indevido aos Estados Unidos como suposta instância fundamental para sua consagração literária, a incompreensão do caráter intrinsecamente inconcluso (infinito) de sua obra”, aponta.

Essa “mitologia” em torno da vida não necessariamente ofusca a obra: as duas se misturam deliberadamente, como ressalta Sterzi, para fazer do autor “o último dos românticos, ou o último dos modernos”. “E note-se que não se trata de qualquer vida, mas de uma vida exemplar do destino político mas também poético de nossos tempos (uma coisa não se separa da outra), uma vida de exilado, isto é, uma vida de quem foi radicalmente escritor”, indica o professor.

O escritor Joca Reiners Terron, um dos entusiastas da ficção brasileira da produção de Bolaño, lembra que essa mitologia pessoal muitas vezes ajuda a disseminar uma obra. “Bolaño deve ter passado 95% de seu tempo escrevendo, sozinho, etc., mas o que perdura na memória do espectador leviano é a fuga da cadeia depois da queda de Allende e outras anedotas (muitas inventadas por ele mesmo). O que interessa para a imprensa é a lenda; para o leitor, os livros”, afirma o autor do recém-lançado A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves.

Schneider ressalta que outras lendas cercam o escritor: o de sua vida de exageros, o de suas entrevistas ("São uma obra de arte à parte, cheias de frases de efeito, cheias de não revelações impressionantes") e o da obra inconclusa, algo também presente em Kafka. "Muito de seu mito vem justamente em relação aos mistérios que cercam 2666, um livro não revisado, cheio de falhas, mas assustador também por isso, o que nos remete ao mito kafkiano de O castelo, livro incompleto mas com fim - quer coisa mais literária do que isso?", comenta. "E os próprios livros de Bolaño nos lembram que não escrever uma obra é um gesto tão literário quanto escrever."

DETETIVE SELVAGEM
Outro ponto importante da obra do chileno, segundo Sterzi, é sua relação com os crimes das ditaduras latino-americanas, que estão presentes mesmo quando sutilmente. "Diz ele, em algum lugar, que o crime parece ser o símbolo do século 20, e esta intuição parece haver guiado sua escrita. Nisto, mesmo sem querer, Bolaño deixa a nu o triste insulamento em que vive grande parte dos brasileiros, não só os escritores, ensimesmados em suas obsessões nacionais ou falsamente cosmopolitas (isto é, eurocêntricas), ignorantes do destino histórico comum do continente", defende o escritor.

A ideia dos crimes é forte na literatura de Bolaño - 2666 é talvez o melhor exemplo dessa obsessão. Não é por acaso que, entre as imagens que evocava para si mesmo em entrevista - Terron, por exemplo, lembra que Bolaño se definia sempre como poeta, não como autor de prosa -, a preferida era a do escritor como detetive.

"Desde que o gênero policial foi criado por (Edgar Allan) Poe, o detetive é visto como o outsider ideal das grandes cidades, o homem que trafega anônimo em meio a uma metrópole que apaga as identidades, que tenta apagar o trajeto percorrido pelo criminoso. No caso de Bolaño, a diferença é que o crime já prescreveu, mas ninguém teve o cuidado de avisar isso ao detetive", defende Schneider.

Sterzi também aponta a imagem do investigador policial. "A literatura é, para Bolaño, exatamente um modo de voltar à cena do crime - de todos os crimes que se confundem com a história mesma da América Latina, que, por sua vez, é apenas um capítulo da história mundial do sofrimento e da esperança - e se deixar atravessar pelos fantasmas."

A busca sempre inconclusa pelo que já passou e pelos fantasmas só poderia render uma obra que nasce morta e viva ao mesmo tempo, uma obra-zumbi, na definição do escritor argentino Alan Pauls. "São obras que inventam mundos e formas que só alguém que já não é desse mundo e nem se reconhece nessas formas pode inventar. Obras afetadas, doentes, inconsoláveis, que não se encaixam de modo nenhum no mundo em que aparecem", escreveu. É por isso que, dez anos depois da morte do autor, 2666, Os detetives selvagens e tantos outros livros do autor continuam pairando sobre a literatura latino-americana e mundial em sua pulsão de vida e de morte.

Leia mais no Jornal do Commercio desta segunda (15/7).

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