Resenha

Livro 'A Forma da Água' expande o universo mítico do filme homônimo

Obra que Guillermo Del Toro transformou em filme pode ser degustada nas palavras dele e do autor Daniel Kraus

JC Online
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Publicado em 26/03/2018 às 12:55
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Obra que Guillermo Del Toro transformou em filme pode ser degustada nas palavras dele e do autor Daniel Kraus - FOTO: Foto: Reprodução
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Vencedor do Oscar 2018, o longa-metragem de Guillermo Del Toro, A Forma da Água, se expande como o líquido vital que lhe intitula. Assume outra forma de narrativa. Não para preencher lacunas — seus fluidos 123 minutos não deixam margem para isso —, mas para mergulhar mais a fundo nas profundezas de seus complexos personagens. Na solidão de Elisa Esposito, uma mulher órfã e muda. Nos traumas de Richard Strickland, um oficial do governo frustrado. E sobretudo no desenvolvimento de personagens secundários. Seus sentimentos, pensamentos, dilemas. Sutilezas e minúcias descritivas, que de certo iriam transbordar numa plataforma com menos poder de imersão do que a de um livro.

Resultado da colaboração entre Del Toro e o escritor norte-americano Daniel Kraus, o livro A Forma da Água, recém-publicado no Brasil pela editora Intrínseca, é simbiótico ao filme, pois eles se complementam — mesmo tendo seus enredos desenvolvidos de forma totalmente independente. Para o filme, Del Toro coescreveu o roteiro ao lado de Vanessa Taylor. A ideia que serviu de pilar para ambas as linguagens, entretanto, emergiu a partir de uma conversa entre o mexicano e Kraus, em 2011, durante uma reunião na qual discutiam sobre o universo fantasioso dos Caçadores de Trolls, outro projeto em que fizeram parceria. Na ocasião, o norte-americano relatou que desde a adolescência tinha em mente a história de uma criatura aprisionada e uma servente que tenta libertá-la. O criador d’O Labirinto do Fauno, que havia sido fortemente marcado em sua infância pelo clássico de aventura O Monstro da Lagoa Negra, embarcou na premissa.

Quando há obras que abarcam um mesmo universo é natural que surja a dúvida do que se deve consumir primeiro. Para tal, não há uma resposta precisa. Claro que, caso o filme seja assistido de antemão, haverá uma tendência a associar a descrição dos personagens à forma física dos atores. Assim como a dos cenários às locações e por aí vai. Contudo, em se tratando de A Forma da Água, um filme com fotografia, figurino, trilha sonora e direção de arte tão sensíveis quanto a sua história de amor improvável, talvez o que já fora retratado seja mesmo a melhor forma de conceber esse mundo “deltoriano”. Caso seja feita a opção pelo caminho inverso, é bem improvável que se tenha alguma decepção ao desconstruir o que fora imaginado ao longo das 349 páginas. Se houver alguma, ela será, no máximo, rasa. Isso porque o talento de Del Toro, como a Academia bem sabe, não se resume às palavras.

Ainda que os excelentes atores, sob uma direção magistral, deem forte carga emocional ao longa, eles não chegam nem perto de exprimir as sensações e angústias transpassadas através do livro, irrigado por uma verve poética metafórica. Bem construído ao ponto de parecer abrir um portal entre dois mundos distintos, uma fenda no espaço-tempo que irradia fantasia, onde o imaginário e o real se confundem tanto quanto a criatura imersa em sua água. Verossimilhança que se deve sobretudo ao epicentro do plot, um recorrente debate mundano: aceitação das diferenças — tanto de gênero, quanto de raça, etnia e orientação sexual.

No romance, a criatura é chamada de “recurso” pelos cientistas e funcionários da Occam – centro de pesquisas ultrassecretas do governo onde a protagonista trabalha como servente – e de Deus Brânquia pelos locais da selva amazônica, onde Strickland passa 17 meses liderando uma expedição para capturar o ser mitológico. Essa jornada, inclusive, não é retratada no longa, que apresenta o homem-anfíbio (como ele é nomeado nas telonas) já capturado e aprisionado num tanque laboratorial. E é muito interessante poder acompanhar o começo de tudo, como esse oficial do governo americano se envolveu com a selva, como se perdeu e se encontrou tantas vezes, entre caçadas e devaneios. Como achou, enfim, o Deus Brânquia.

Também é revelado no livro o motivo pelo qual Strickland sente tanto temor em relação ao general Hoyt, o chefão do governo que lhe chantageia. Um feito atroz que lhe atordoa e lhe persegue como uma sombra – e um background que ajuda bastante na compreensão das suas motivações e incongruentes tomadas de decisões posteriores.

Narrativa alternada

Com uma montagem narrativa alternada, como é percebido nos cortes das obras cinematográficas, as percepções e perspectivas de um personagem sobre as coisas ao seu redor e sobre si mesmo são intercaladas por reflexões e observações dos outros. O que abre espaço para o desenvolvimento dos coadjuvantes. Elainie (aka Sra. Strickland), por exemplo, passa a ser ouvida. Seus anseios, aflições... Como ela viveu bem melhor durante 17 meses na ausência de um marido opressor. E como as suas ações subsequentes afetam diretamente no desenrolar dos eventos.

O (ótimo) elemento surpresa fica por conta do ponto de vista do homem-anfíbio, que se expressa em frases desconexas, sem pontos ou vírgulas, mas com o necessário para fazer com que Elisa se sinta completa, assim como é este livro – o qual se expande ainda mais com as quatro etéreas ilustrações em carvão do artista James Jean.

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