Vencedor do Oscar 2018, o longa-metragem de Guillermo Del Toro, A Forma da Água, se expande como o líquido vital que lhe intitula. Assume outra forma de narrativa. Não para preencher lacunas — seus fluidos 123 minutos não deixam margem para isso —, mas para mergulhar mais a fundo nas profundezas de seus complexos personagens. Na solidão de Elisa Esposito, uma mulher órfã e muda. Nos traumas de Richard Strickland, um oficial do governo frustrado. E sobretudo no desenvolvimento de personagens secundários. Seus sentimentos, pensamentos, dilemas. Sutilezas e minúcias descritivas, que de certo iriam transbordar numa plataforma com menos poder de imersão do que a de um livro.
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Resultado da colaboração entre Del Toro e o escritor norte-americano Daniel Kraus, o livro A Forma da Água, recém-publicado no Brasil pela editora Intrínseca, é simbiótico ao filme, pois eles se complementam — mesmo tendo seus enredos desenvolvidos de forma totalmente independente. Para o filme, Del Toro coescreveu o roteiro ao lado de Vanessa Taylor. A ideia que serviu de pilar para ambas as linguagens, entretanto, emergiu a partir de uma conversa entre o mexicano e Kraus, em 2011, durante uma reunião na qual discutiam sobre o universo fantasioso dos Caçadores de Trolls, outro projeto em que fizeram parceria. Na ocasião, o norte-americano relatou que desde a adolescência tinha em mente a história de uma criatura aprisionada e uma servente que tenta libertá-la. O criador d’O Labirinto do Fauno, que havia sido fortemente marcado em sua infância pelo clássico de aventura O Monstro da Lagoa Negra, embarcou na premissa.
Quando há obras que abarcam um mesmo universo é natural que surja a dúvida do que se deve consumir primeiro. Para tal, não há uma resposta precisa. Claro que, caso o filme seja assistido de antemão, haverá uma tendência a associar a descrição dos personagens à forma física dos atores. Assim como a dos cenários às locações e por aí vai. Contudo, em se tratando de A Forma da Água, um filme com fotografia, figurino, trilha sonora e direção de arte tão sensíveis quanto a sua história de amor improvável, talvez o que já fora retratado seja mesmo a melhor forma de conceber esse mundo “deltoriano”. Caso seja feita a opção pelo caminho inverso, é bem improvável que se tenha alguma decepção ao desconstruir o que fora imaginado ao longo das 349 páginas. Se houver alguma, ela será, no máximo, rasa. Isso porque o talento de Del Toro, como a Academia bem sabe, não se resume às palavras.
??????A closer look at the spot gloss silkscreened on the Shape of Water print. Release ends 7:59am PST Jan 31 https://t.co/tE0FzDUOzf pic.twitter.com/6KwUkOD7GV
— James Jean (@JamesJeanArt) 31 de janeiro de 2018
Ainda que os excelentes atores, sob uma direção magistral, deem forte carga emocional ao longa, eles não chegam nem perto de exprimir as sensações e angústias transpassadas através do livro, irrigado por uma verve poética metafórica. Bem construído ao ponto de parecer abrir um portal entre dois mundos distintos, uma fenda no espaço-tempo que irradia fantasia, onde o imaginário e o real se confundem tanto quanto a criatura imersa em sua água. Verossimilhança que se deve sobretudo ao epicentro do plot, um recorrente debate mundano: aceitação das diferenças — tanto de gênero, quanto de raça, etnia e orientação sexual.
No romance, a criatura é chamada de “recurso” pelos cientistas e funcionários da Occam – centro de pesquisas ultrassecretas do governo onde a protagonista trabalha como servente – e de Deus Brânquia pelos locais da selva amazônica, onde Strickland passa 17 meses liderando uma expedição para capturar o ser mitológico. Essa jornada, inclusive, não é retratada no longa, que apresenta o homem-anfíbio (como ele é nomeado nas telonas) já capturado e aprisionado num tanque laboratorial. E é muito interessante poder acompanhar o começo de tudo, como esse oficial do governo americano se envolveu com a selva, como se perdeu e se encontrou tantas vezes, entre caçadas e devaneios. Como achou, enfim, o Deus Brânquia.
Também é revelado no livro o motivo pelo qual Strickland sente tanto temor em relação ao general Hoyt, o chefão do governo que lhe chantageia. Um feito atroz que lhe atordoa e lhe persegue como uma sombra – e um background que ajuda bastante na compreensão das suas motivações e incongruentes tomadas de decisões posteriores.
Narrativa alternada
Com uma montagem narrativa alternada, como é percebido nos cortes das obras cinematográficas, as percepções e perspectivas de um personagem sobre as coisas ao seu redor e sobre si mesmo são intercaladas por reflexões e observações dos outros. O que abre espaço para o desenvolvimento dos coadjuvantes. Elainie (aka Sra. Strickland), por exemplo, passa a ser ouvida. Seus anseios, aflições... Como ela viveu bem melhor durante 17 meses na ausência de um marido opressor. E como as suas ações subsequentes afetam diretamente no desenrolar dos eventos.
O (ótimo) elemento surpresa fica por conta do ponto de vista do homem-anfíbio, que se expressa em frases desconexas, sem pontos ou vírgulas, mas com o necessário para fazer com que Elisa se sinta completa, assim como é este livro – o qual se expande ainda mais com as quatro etéreas ilustrações em carvão do artista James Jean.