Misturando referências do Brasil e do Japão, nasceu o enredo de Romaria, história em quadrinhos que une a fantasia de clássicos da cultura pop oriental à dura realidade dos sertões brasileiros – esta bastante destrinchada no panorama da literatura nacional. À primeira vista, esse inusitado encontro entre culturas antípodas parece resultar numa narrativa inventiva, rica em experiências emocionais. O que pode se concretizar ou não. É que até o momento só foram divulgadas 13 páginas da HQ, ilustrada em P&B por Alexandre Carvalho e roteirizada por Jun Sugiyama. Para o andar da carruagem, a dupla depende de apoio financeiro, e por isso lançou uma campanha no Catarse, com a meta de arrecadar R$ 8 mil até o dia 28 de abril, para que a obra esteja pronta a tempo do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), que acontece em Belo Horizonte de 30 de maio a 3 de junho.
Leia Também
- Angola Janga: Uma história de Palmares que vai muito além de Zumbi
- Com humor ácido, HQ 'Já Era' mistura drama, aventura e fantasia
- HQ 'Sem Dó' é a síntese perfeita da sociedade paulistana dos anos 1920
- Billie Holiday: HQ pungente como o jazz de Lady Day
- HQ 'A Diferença Invisível' traz o autismo de forma sensível e didática
O quadrinho conta a história de Délia, uma garota sertaneja que deixa sua casa em busca de água, inspirada pelos contos heroicos contados pela sua avó, a quem ela vê adoecer. Quando decide partir pelo semi-árido, numa jornada aparentemente sem trégua, ela acaba se deparando com os mais diversos tipos de pessoas e criaturas, moldadas pela seca. Pela sede. E daí vem o título Romaria, que significa peregrinação, geralmente religiosa. “Apesar da motivação da protagonista não ter a ver com o cristianismo, no mundo de Romaria a própria água é um milagre. Essa é a razão deste nome, mostrar uma jornada que representa algo maior e que envolve muitos, não somente Délia”, explica o roteirista.
Grande fã de mangás, animes e JRPGs, Jun deixa transparecer nos seus trabalhos esse repertório de influências, como na série JaPow, publicada pela Editora Draco, a qual retrata, de maneira fantasiosa, o mundo da cultura japonesa no bairro da Liberdade (São Paulo). Em Romaria, a principal referência é The Legend of Zelda, série de jogos eletrônicos da Nintendo que completou 30 anos em 2016, com mais de dez títulos lançados. “Desde pequeno, sempre gostei muito de histórias de fantasia. Jogos como The Legend of Zelda e Final Fantasy, obras como O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Nárnia… Tudo isso me encantava, sobretudo por se relacionar com o mundo real, ainda que viva no imaginário”, conta, revelando acreditar que “todas as histórias de ficção são embasadas nas nossas experiências e objetos de estudo”.
Foi justamente dessa mescla entre realidade e devaneio, reflexão e diversão que surgiu a trama da HQ, concebida em 2015. “O tempo que passei desenvolvendo o roteiro foi bem pouco, aproximadamente um mês. O que demorou mais foi o período entre ter a ideia inicial e trabalhar a história”, relata Jun, ressaltando que escreveu o roteiro basicamente sozinho, com ajuda do colega Airton Marinho para montar os diálogos. Foi ele também quem convidou Alexandre, seu parceiro na coletânea independente Gibi Quântico, para compor o visual da história, feita a lápis e finalizada a nanquim. “Alexandre passou um bom tempo fazendo testes de página e concepts de personagens. Só pegou o ritmo este ano, há dois ou três meses. Uma das coisas mais bacanas do traço dele é conseguir dar vida ao cenário, fazer da paisagem o ponto de partida para o que foi pensado”, enaltece.
O Sertão é o coração da história
Nas 13 das 83 páginas (fora extras e capas) a serem publicadas, já fica muito claro que o Sertão é o coração da história. E para construir a ideia dessa paisagem tão protagonista quanto os seres que a habitam, Jun recorreu a uma obra-prima do romance brasileiro moderno: Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Assim como Riobaldo (o narrador-protagonista que se mete a jagunço) passa por uma saga de autoconhecimento nas suas andanças pelos “Sertões das Gerais”, revelando-se enquanto descobre o mundo, Délia também se transformará em meio à essa natureza áspera. Sua travessia dependerá do seu carisma e coragem, o que ela irá buscar justamente nas histórias dos reinos distantes contadas pela sua avó. A diferença é que enquanto em The Legend of Zelda a princesa precisa ser resgatada do vilão pelo herói Link, que tem como missão salvar o reino de Hyrule, em Romaria é uma garota quem deve encontrar a “fonte” dos males e restaurar uma era de prosperidade e harmonia.