Quase no meio do palco, os músicos Juliano Hollanda e Rafael Marques, apoiados em seus instrumentos de cordas, forneciam a linha de equilíbrio por onde ela, mais que cantar, deveria se movimentar. Depois de entrar em cena num terninho preto, chapéu de lantejoulas como moldura dos cachos fartos, uma beleza entre o recato e a vontade de pular a janela quebrando treliças, Isadora Melo muda rapidamente o figurino e já está armada num vestido branco e longo de tule que mais sugere que protege. Diante dela, olhar cansado de trabalho, enternecido de admiração, o diretor João Falcão lhe ia talhando os gestos, modulando-lhe a voz: “Não é para mostrar, é mais para insinuar, ficar com a saia curta, muito rápido”, dizia o pernambucano, quase 60 anos, radicado no Rio de Janeiro, quase quarenta séries de TV e filmes no currículo, outras quatro dezenas de musicais – entre eles, alguns antológicos, como Cambaio em parceria com a ex-mulher Adriana e os compositores Edu Lobo e Chico Buarque, e outros tão elogiados como poucos vistos além do Rio de São Paulo. O último deles, uma adaptação da jorgeamadiana Gabriela, espetáculo no qual dirigiu, pela primeira vez, entre vários atores, Isadora. Na última terça, estava quase pronto o musical Dorinha, Meu Amor. Quase.
Hoje, quando o público que conseguiu convites para estreia no intimista Teatro Arraial, o espetáculo provavelmente terá mudado um pouco desde o último ensaio. “Acho que essa é a versão definitiva no espetáculo”, dizia João, risonho apesar de apenas quatro horas de sono na noite anterior. “Eu fico louca”, gargalhava Isadora. “Quando o texto tá decorado, João vem e acrescenta alguma coisa”. É assim que eles criam: da sinergia entre o elenco e assistentes, bons achados do acaso vão se incorporando ao roteiro.
Se já era a grande nova voz feminina da cena musical pernambucana contemporânea - ao lado, sem hierarquias, apesar das diferenças, da também cantora e bailarina Flaira Ferro, que a auxilia na preparação corporal para o espetáculo -, Isadora Melo faz, neste musical.
ALTER-EGO
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Dorinha, Meu Amor é um musical idealizado por João Falcão depois de um encantamento sem agendamento prévio pela cantora. Há uns quatro meses, o diretor confraternizava com os pupilos num bar depois de uma oficina de interpretação em Goiana, na Mata Norte. No meio da farra, de supetão, o amigo e também cantor Almério atirou: “João, você tem que ouvir a voz de Isadora”. Meio tímida, meio atirada, ela soltou uma tema da banda Calypso de quem, jura, é fã. João Falcão percebeu o potencial. Viu que tinha musculatura a ser trabalhada.
“O espetáculo é esse musical com essa personagem, essa cantora, Dorinha, que vai explicando e contando o que é o amor”, diz o diretor. “Mas é também um alter-ego da própria Isadora Melo, uma grande cantora”, elogia ele que, depois de uma rápida campanha de crowdfunding, obteve os R$ 50 mil mínimos e necessários para encampar o projeto. Mais que uma apresentação, de fato um projeto: antes de viajar pelo Brasil, o espetáculo ficará por dois meses em cartaz, sempre às quintas, no pequeno Teatro Arraial, na Rua da Aurora. “É o tempo para que a cidade se acostume com o espetáculo, para ser incorporado à vida da cidade, e também para que o próprio espetáculo vá mudando, amadurecendo”, ele diz. Além de suas dinâmicas próprias, há outras razões para ir várias vezes ao musical. A cada quinta, um convidado especial entra em cena com Isadora. Hoje, por exemplo, o mais que soulman Jr. Black aporta à cena.
Além do magnetismo dos arranjos de Juliano Holanda, da virtuose de Rafa Marques e do texto engenhosamente randômico de João Falcão, o espetáculo tem assento mesmo na delicadeza potente de Isadora. Ela é, mas já não é apenas, a cantora afinadíssima, suavidade e veludo, do seu aclamado primeiro disco Vestuário. Nem apenas a mulher que melhor materializa as canções imagéticas de Juliano Holanda - de quem o espetáculo conta com três composições inéditas ao lado de classicaços da música brasileira, uns forrós mais líricos e até um tecnobrega da Calypso. Quando explora uns graves maviosos à Ângela Maria para cantar Carinhoso, de Pixinguinha, Isadora cruza a fronteira das covers. Tem tessitura para incorporar para si as canções como a cantora que é.
Isadora abre e fecha o espetáculo divergindo sobre o amor. “Metade do amor eu aprendi pequena, ouvindo das canções de minha mãe. A outra metade, aprendi sentindo”, anuncia. Certamente consequência desses dois meses de ensaios, sua voz está aquecidíssima. Melodiosa até nos silêncios. Quando abre a boca para pedir um simples copo d’água, música parece sair de sua boca. João Falcão estava certo em seu impulso: Dorinha é mesmo um amor.
Dorinha, Meu Amor, de João Falcão. De hoje a 26 de outubro, às quintas, às 20h. Teatro Arraial Ariano Suassuna (Rua da Aurora, 457, Boa Vista). Ingresso: R$ 30 e R$ 15. Fone: 3184-3057