RIO DE JANEIRO - Ao final do show, Ney Matogrosso não se conteve. Foi ao camarim: "Parabéns, eu fiquei muito impressionado. Você veio para ficar, menino!", disse ele, mais com olhos e braços que palavras, a Almério - ao lado da baiana Mariene de Castro, o pernambucano emocionara minutos antes uma plateia recheada de respeitadas personalidades da cena artística carioca, no reinaugurado teatro do Jóquei da Gávea. Almério ainda se recuperava do susto de saber, pouco antes de entrar em cena, da presença do ídolo na plateia de onde observaria sua interpretação para Fala, clássico do Secos & Molhados talhado na memória de gerações pela voz laminosa de Ney. "Que maldade do Zé te falar que eu estaria aqui. Eu mesmo não gosto de saber que o autor ou outro intérprete esterá na plateia quando vou cantar uma música. Sempre deixa a gente nervoso", brincava Ney.
O Zé a quem Ney se refere é José Maurício Machline. Gaúcho, 60 anos, membro de uma família que fez fortuna e história na indústria brasileira de eletroeletrônicos com a antológica e extinta marca Sharp, músico, sacerdote respeitado e dedicado do candomblé, amado por estrelas até já desencarnadas da MPB, Zé Maurício continua, décadas a fio, um personagem de primeira trincheira no ecossistema musical brasileiro.
Criador e diretor do Prêmio da Música Brasileira, tem se concentrado tanto na manutenção e reconhecimento da memória do cancioneiro nacional como na injeção em novos talentos. Depois de dar um dos empurrões fundamentais para nacionalizar o nome de Johnny Hooker, aclamado com um título de Melhor Cantor Popular e de fama metabolizada depois do convite para o número com Alcione no ano em que a premiação homenageou Maria Bethânia, Machline lança agora holofotes sobre Almério. Literalmente: idealizou, viabilizou e dirigiu o show AcasoCasa que, após a estreia no Rio e uma passagem pela prestigiosa e nova Casa Natura Musical, em São Paulo, vai começar a percorrer o País. O show casa as personas musicais de Almério e Mariene de Castro.
"Não posso chamá-lo de outra coisa. De uma sensibilidade e generosidade comoventes, Zé Maurício é mesmo um padrinho", agradecia Almério. Machline dispensava o excesso de reverência. Dizia estar apenas fazendo o que sempre fez - contribuir para a linha evolutiva da música brasileira. "Almério pode estar em qualquer lugar de uma pessoa de talento verdadeiro. É muito difícil ver uma pessoa com a capacidade vocal e interpretativa de Almério. Sem medo de errar: hoje no Brasil, é quase impossível alguém assim", diz ele, dono de uma confiança diretamente proporcional à proverbial sinceridade com que trata seus interlocutores na música.
Apoiar, para Zé Maurício, não sinaliza pacto eterno. "Johnny Hooker, por exemplo, é um grande artista, mas pegou um vício muito feio de negar a origem. Ele é talentoso, mas começou a levantar bandeiras desnecessárias, um discurso bobo que pode ir tirando a força de seu talento. Almério não compete nem renega seus ídolos."
Machline não teme latidos. Começou sua relação profissional com a música por causa de cachorros. "Eu era presidente do Kennel Club em São Paulo, e precisava arrumar dinheiro para a entidade", lembra. "Me indicaram uma pessoa para fazer um show. Era a Rosa Maria. Fiquei amigo dela. E perguntei por que ela não tocava no rádio." Ao procurar as respostas para a amiga, não sabia, estava abrindo frestas de um novo futuro profissional."Ela respondeu: porque tem que fazer um disco". Na época, ele era de um conhecimento sobre produção pouco maior do que fazer deslizar a agulha sobre o vinil nos antigos toca-discos. "Não sabia de nada, nem que tinha que alugar um estúdio, que distribuir o disco".
Com a necessária coragem dos que nada sabem, o novato foi lá e fez o que tinha que ser feito. Usou, com naturalidade, chaves fornecidas pelo prestígio da indústria da família. Abria as portas conforme descobria o corredor. Procurou o todo poderoso presidente da Warner, a onipresente gravadora da então monolítica indústria fonográfica brasileira. "O André Midani olhou na minha cara e achou que eu era um ET. E disse: você é louco, mas eu também, vamos produzir o disco".
O disco da blueswoman brasileira de calibragem norte-americana Rosa Maria precisava tocar. "Na época, me disseram que, pra fazer sucesso, tinha que se lançar um clipe Fantástico. Fui procurar um cara chamado Bonner. Ele disse: você é louco, mas eu também sou louco, vamos fazer o seu clipe. Ficamos amigos, e eu me apaixonei de vez por música".
Na sequência, Zé Maurício produziria nomes como Nana Caymmi, Lenny Andrade, Joyce. Dedicava cada vez mais tempo (e recursos) como executivo para promover artistas brasileiros até que, quase 30 anos atrás, recebeu o convite de um velho amigo da família para conhecer a famosa cerimônia de premiação criada pela indústria fonográfica dos Estados Unidos ainda em 1958. De volta da viagem com o então ministro Mário Henrique Simonsen resolveu criar a versão brasileira do Grammy. Vice-presidente de comunicação na empresa, convenceu a diretoria familiar. Surgia o Prêmio Sharp de Música Brasileira.
Durante doze anos sob a Sharp até perto de sua falência, o prêmio teria ainda gigantes como a Tim ou a mineradora Vale disputando o privilégio de imprimir a logomarca no evento. Este ano, pela primeira vez, quase deixou de acontecer. "Eu fiz na raça e no amor, os artistas se reuniram pela importância que o prêmio sempre teve", ele diz. Com os patrocinadores em retirada, fornecedores abriram mão de pagamento - até maquiadores trabalharam de graça. Artistas como Bethânia abriram mão de cachês, Ivete Sangalo foi por conta própria. Em sua 28ª edição, o PMB acabou por acontecer - e homenagear justamente Ney Matogrosso. Na camaradagem grande: uma edição do prêmio pode custar até R$ 10 milhões. A festa aconteceu sob a preocupação de seu organizador de que a noite se transformasse num grande ato político. "A política que se faz aqui é pela música. Não gosto desse cenário (de áurea de resistência) para o prêmio, ele existe e vai continuar existindo porque é importante e respeitado para a classe artística".
Foi em sua própria casa que Zé Maurício Machline conheceu Almério. Ou melhor, na casa de uma grande amiga. A empresária Ione Costa comemorava a produção do disco Natal Nordestino, relançado agora pela sofisticada e pequena gravadora Biscoito Fino. Na sala, nomes como Alceu Valença e Elba Ramalho davam canjas animadas. Zé Maurício se impressionou com o timbre de Almério. Há um mês, fez questão de convidá-lo para sua festa de aniversário no Rio.
Entre um brinde e outro, Almério ia soltando a voz e o espírito entre convidados como a própria Elba e Zélia Duncan. Ao ouvi-lo duetar com Mariene de Castro, Zé Maurício teve, de novo, o ouvido aceso. "Quando eles começaram a cantar juntos, vi um casamento de tons difícil de acontecer. Apesar das vozes diferentes, uma tonalidade muito próxima. Fui ficando muito emocionado", pontua Zé. Por volta das duas da manhã, quando o almoço servido às duas da tarde estava perto do fim, Machline decidia. "Montei um repertório, pensei numa sonoridade". Estava decidido o show.
Com um trio minimalista e poderoso de instrumentistas, o espetáculo conta com a amplitude do pernambucano Juliano Holanda no violão; a impetuosidade de Pedrinho Franco também nas cordas, músico que, aos 27 anos, acompanha Bethânia, e a sanfona urbana de Gel Barbosa. "Montei um repertório, pensei numa sonoridade, por isso o trio", diz Zé que, anos atrás, chegou a assinar um disco como cantor. No álbum, fez duetos com Elba e Jane Duboc em canções de Chico Buarque e teve coragem para para dar uma nova versão para Saigon, assinatura absoluta do finado Emílio Santiago, regravada num duelo com o acordeon de Dominguinhos.
OUTROS ACORDES
O show casa, sem fundir, as personalidades artísticas dos dois intérpretes. De uma linhagem claramente matriciada por Clara Nunes, cabelos soltos, peito aberto, Mariene tem no canto grave uma autoridade de orixá. De agudos sinuosos e cristalinos, Almério parece lançar aboios de sua poética por céus coletivos quando canta. Nos números a dois, como Lamento Sertanejo, de Gil e Dominguinhos, uma brasilidade arquetípica se afirma no contemporâneo de suas vozes.
Ao assistir à falência do modelo tradicional de indústria, Zé Maurício parece comemorar um pouco mais que lamentar. "Era muito ditatorial o mercado, e houve tanta mutação que é difícil a gente dizer o que ganhou ou perdeu. Antes, um disco custava uma fortuna; hoje, custa 'um real'. Houve uma democratização para a música muito significativa, com o surgimento, aliás, de mercados regionalíssimos, eles lançam e são grandes hits, nem precisam nem querer vir pro Rio ou pra São Paulo", diz ele.
Com a democratização também de volta da comunicação com a internet, ele reeditou o programa de entrevistas mantido na extinta TV Manchete. "Gosto de fazer o programa, de conversar com esses artistas, saber de seus processos. Não importa se na TV ou na internet", diz ele, de novo promovendo parcerias célebres. Num deles, recentemente, gravou o encontro musical de Alice Caymmi e Gal Costa.
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"Alice é uma figura muito parecida com o que eu falei do Almério - além de ser apaixonado por Nana, a tia dela, a cantora da minha vida, ela tem um timbre e um talento gigantes. Outra coisa muito impressionante hoje é o Baiana System", diz ele, com o foco especialmente sintonizado em outra geografia. "Pernambuco hoje é o que tem de mais interessante na música brasileira. Desde antes de Alceu, aliás. O próprio Hooker, que é equivocado, tem grande talento musical. Almério confirma isso", ele diz. "Minha parte, eu fiz. Agora, espero que os empresários de ambos trabalhem para levar o show pelo País", diz Zé Maurício que, entre demandas, volta à rotina. Além de trabalhar para viabilizar o próximo Prêmio da Música Brasileira, continua se revezando entre o Rio e São Paulo onde, todo começo de semana, quase nunca é lembrado como empresário da música. Na cidade, atua como sacerdote do candomblé, distribuindo passes a gentes de outros acordes.