Para a maioria dos atores, interpretar o mesmo personagem por muito tempo é um pesadelo. Ficar marcado exclusivamente por um papel não soa bem para uma profissão que, por natureza, pressupõe versatilidade, transformação. No caso de José Pimentel, isso nunca foi um problema. Por 40 anos, interpretou Jesus nas Paixões de Nova Jerusalém e do Recife e a associação com o Nazareno é, antes de tudo, um motivo de orgulho. Mas, resumir sua trajetória e contribuições ao teatro pernambucano à encenação religiosa é um erro, como mostra o jornalista Cleodon Coelho no livro José Pimentel – Para Além das Paixões (Cepe Editora, 185 páginas, R$ 80) que será lançado quarta-feira, às 18h, no Teatro de Santa Isabel.
Parte de uma coleção que resgata a memória de ícones da cultura pernambucana, a biografia de José Pimentel, hoje com 83 anos, oferece um retrato completo e aprofundado de um homem que dedicou sua vida à arte. Fugindo de estereótipos, o livro oferece ao leitor ferramentas para tentar decifrar um personagem que habita o imaginário popular há quatro décadas. Rico em fatos e imagens, é um quebra-cabeças sobre uma obsessão.
Primogênito de quatro irmãos, nasceu em 1934, em Garanhuns, mas passou a infância pulando de cidade em cidade devido ao temperamento irascível de seu pai, Virgínio, que mudava de CEP a cada confusão. Do genitor, Pimentel absorveu o fascínio pelas histórias do cangaço, que ouvia com encantamento e, posteriormente, seriam desenvolvidas em seu trabalho artístico.
Tinha 10 anos quando o pai morreu e família mudou-se para o Recife. Matriculado na Escola Comercial Prática, teve Ariano Suassuna como professor de português e mentor. Posteriormente, os caminhos de ambos voltariam a se cruzar: Pimentel participou da primeira – e elogiada – encenação do Auto da Compadecida, em 1956. Arrimo de família, teve que trabalhar desde cedo para prover aos seus e, por isso, arte não era uma opção.
Enquanto exercia serviços técnicos, começou a praticar halterofilismo. A timidez foi dando espaço à vontade de ser visto e o culto ao corpo o levou a participar de competições, sendo eleito como as “Melhores Pernas” em uma delas. Foram dessa época os primeiros registros de seu nome na mídia local. Por conta do seu físico, foi chamado pelo amigo Octávio Catanho, o Tibi, que era amigo dos diretores Luiz Mendonça e Clênio Wanderley, para participar do Calvário da Paixão, nas ruas de Fazenda Nova, interpretando um soldado romano. Voltou do Brejo da Madre Deus com novo fôlego.
Com Catanho, integra o Grupo Paroquial de Água Fria e atua como Pilatos na Paixão de Cristo do bairro. O coletivo monta Lampeão, de Rachel de Queiroz, no Teatro Santa Isabel, marcando o primeiro contato dele com o palco à italiana. A apresentação foi cheia de problemas e a imprensa não perdoou. O fracasso, no entanto, não abalou um já empolgado Pimentel.
Através de Clênio Wanderley e de Luiz Mendonça, integra a montagem de O Auto da Compadecia e experimenta pela primeira vez o sucesso. A montagem tinha inovações como o fato do elenco entrar em cena pela plateia e ficou em cartaz por dois anos, além de ter sido aclamada no Rio de Janeiro, ganhando elogios de gente consagrada, como Fernanda Montenegro.
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A partir da década de 1960, passa a integrar Teatro Popular do Nordeste, capitaneado por Hermilo Borba Filho. Aplicando conceitos da cultura popular, o grupo buscava a construção de uma nova experiência cênica, distante das estratégias rígidas que predominavam nos palcos locais. A qualidade da atuação de Pimentel chama a atenção dos críticos. Vieram sucessos como Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, A Farsa da Boa Preguiça, de Ariano, O Noviço, de Martins Pena, entre outras.
“Falar da história de José Pimentel é também passar em revisão 60 anos de teatro pernambucano. As pessoas costumam reduzir a contribuição dele às Paixões, mas ele foi um ator e diretor muito ativo. Pimentel emendava uma peça na outra, foi um homem do teatro por excelência”, reforça o autor.
GALÃ DE TV E CINEMA
Durante os anos 1960, José Pimentel se torna um dos rostos mais conhecidos de Pernambuco, graças às suas participações frequentes na televisão. Como tele-ator, participou de trabalhos na TV-Rádio Clube e TV Jornal do Commercio. As telenovelas começavam a se tornar uma febre nacional e, no Estado, Pimentel foi um de seus primeiros galãs, sendo a novela A Moça do Sobrado Grande o auge desse processo.
Cinéfilo, Pimentel deu seu primeiro passo no cinema em 1965, quando atuou em Riacho de Sangue, filme de cangaço que ativou as memórias das histórias contadas pelo seu pai. Encenou ainda A Noite do Espantalho, Faustão, de Eduardo Coutinho, e A Batalha dos Guararapes, que inclusive, inspirou o espetáculo épico que ele dirigiu anos depois.
CARREGAR A CRUZ
Pimentel assumiu o papel de Cristo em Nova Jerusalém em 1978, aos 44 anos. Lá, como ator e diretor, ficou até 1996, de onde saiu brigado e fundou a Paixão de Cristo do Recife. Na capital, passou mais 20 anos como o Nazareno. Há anos, no entanto, era alvo de críticas por conta da idade. Sempre rebateu de forma enfática e afirmou que ficaria no papel até o fim.
Ano passado, esse momento quase chegou. Após um problema de saúde que o levou à UTI, bateu o pé para voltar ao palco do Marco Zero. Em 2018, no entanto, passará, a contragosto, o papel para Hemerson Moura. Pimentel está sentido com a mudança e não esconde. Chegou a ameaçar, inclusive, voltar a carregar a cruz. Questionado sobre a origem da obsessão do artista pelo papel, Cleodon Coelho acredita que nem o próprio deve ter consciência.
“É muito interessante isso: apesar do apego ao personagem, ele não é desses atores que acham que ‘encarnam’ quem interpretam. Fora do palco, ele é apenas José Pimentel”, lembra o escritor.