O incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro causou "uma perda irreparável" às culturas indígenas, comparável "à invasão europeia de 1500", afirmou José Urutau, da etnia Guajajara, linguista e pesquisador na instituição que acompanhou, impotente, o avanço das chamas da Aldeia Maracanã.
A população indígena "vem sofrendo esse ataque sucessivo desde 1500, e esse ataque atual à memória dos povos originais e à língua (...) foi um linguicídio, um epistemicídio, quando exterminam todo o conhecimento, toda a cultura de um povo", disse Urutau à AFP.
O Museu Nacional contava com 40.000 objetos de 300 povos indígenas e era sede do Centro de Documentação de Línguas Indígenas (CELIN), que tinha "o maior acervo de registros de línguas indígenas a nível nacional e internacional, e também na América Latina", detalhou.
'Assassinados de novo'
"Estávamos aqui em ritual (...) cantando, dançando. Quando nós olhamos para o prédio, ele estava em chamas. Pegamos os guerreiros, pegamos alguns baldes e fomos para lá pensando que dava para apagar o fogo com balde d'água", contou José Urutau que, ao chegar ao museu, só pôde observar como o histórico edifício era consumido, na noite de domingo.
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Essa tragédia significou a destruição "quase completa, ou total, do acervo das populações originárias do território nacional. Afetou a todos nós", acrescentou.
"É uma perda irreparável, como se fosse a própria invasão europeia em 1500", em referência ao ano no qual os primeiros navegadores portugueses chegaram ao atual território do Brasil.
"É um acervo de mais de 500 anos de memória, não tem como calcular o tamanho da perda", assinalou. "É como se tivéssemos sido assassinados de novo, o assassinato é a morte da própria língua, da própria cultura, da própria memória".
"Do ponto de vista da preservação da memória e da cultura dos povos indígenas é uma tragédia sem precedentes", concordou Wallace Moreira Bastos, presidente da organização governamental Fundação Nacional do Índio (Funai).
"Estamos tentando entender como faremos daqui para frente (...) É uma perda irreparável, não tem como recuperar esse acervo que foi perdido", afirmou Moreira em uma entrevista por telefone à AFP.
Em busca de um futuro
José Urutau Guajajara chegou ao Rio de Janeiro saído do Maranhão na década de 1990 para estudar. Atualmente ocupa junto com 40 índios o antigo terreno do Museu do Índio, ao lado do estádio Maracanã.
São cerca de 800 m2, batizados "Aldeia Maracanã", que incluem um enorme e antigo casarão que seria derrubado para dar espaço a um estacionamento para a Copa do Mundo de 2014.
"Parte do registro do genocídio dos povos originários estava aqui nesse prédio", contou. Na década de 1970, o museu foi transferido para o bairro de Botafogo.
Os índios se instalaram em 2006 na antiga mansão e no terreno próximo, e pretendem recuperá-los para instalar ali um centro de acolhida e pesquisa, que poderia até receber departamentos do museu destruído.
"Não temos estrutura, mas acho que podemos criar essa estrutura para receber, principalmente, a área de educação indígena, a área de línguas indígenas, antropologia e direitos indígenas", assinalou José Urutau.
Sem descartar essa opção, Moreira Bastos apontou que o Museu do Índio em Botafogo, com 16.000 peças etnográficas, "talvez seja o caminho mais provável para continuar esse trabalho".
O Museu do Índio está fechado ao público desde julho de 2016 devido "à realização de obras de adequação de segurança" e de "prevenção e combate a incêndio", embora continue com seu trabalho de pesquisa, detalhou Arilza de Almeida, diretora substituta dessa instituição.