Na manhã daquela sexta-feira, a soldadora Josenilda Silva se preparava para protagonizar um dia histórico. Acordou cedo e teve cuidado de não desmanchar o penteado. Uma profissional contratada pela Transpetro tinha se abalado do Rio de Janeiro para fazer o cabelo da madrinha do navio número um do Programa de Modernização e Expansão da Frota (Promef). “Não entendi pra que tudo aquilo. Aqui em Pernambuco tem muita cabeleireira”, diz. No início da tarde, desfilava pelo Estaleiro Atlântico Sul (EAS) de braços dados com o então presidente Lula. Era 7 de maio de 2010, data do lançamento ao mar e batismo do petroleiro João Cândido, o primeiro navio do PAC. O ritual concretizava em aço e (muitos) erros de soldagem, a retomada da indústria naval no Brasil após o naufrágio dos anos 1980.
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O ex-presidente Lula queria que a bandeira brasileira tremulasse nas embarcações que fazem o transporte de petróleo e derivados. A ideia era reduzir a compra de navios no exterior e as despesas com aluguel. Com o reforço da frota marítima, o País ganharia com a revitalização de uma atividade demandante de mão de obra, tecnologia embarcada e perfil global. Idealizado em 2004, o Promef descentralizaria a construção naval no Brasil, permitindo a construção de novos estaleiros e a modernização do parque industrial existente (até então concentrado no Rio). A Transpetro - braço de transporte da Petrobras - seria a dona das encomendas e o BNDES financiaria as embarcações e as empresas. A iniciativa previa a contratação de 49 embarcações ao custo de R$ 11,2 bilhões a quatro estaleiros nacionais.
Controlado inicialmente pela Queiroz Galvão e a Camargo Corrêa, o Atlântico Sul foi a maior aposta do programa. As empresas investiram R$ 2,1 bilhões para erguer o empreendimento no Complexo de Suape e abocanham a maior parte da encomenda do Promef (22 navios). “Naquela época, o governo Federal se dispôs a criar um programa de construção de navios com preços e prazos irreais para o setor internacional. Foi uma decisão política e não de mercado. Faltou verificar as condições efetivas de infraestrutura, recursos humanos e tecnologia, além de estabelecer metas de desempenho para os estaleiros. Hoje, diante da crise financeira na Petrobras, não é mais possível manter contratos desvantajosos do ponto de vista empresarial por questões políticas”, avalia Floriano Pires Júnior, um dos maiores especialistas no setor naval no Brasil e professor da Coppe – Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nas duas últimas semanas, a Transpetro cancelou a encomenda de 13 navios aos estaleiros Atlântico Sul (11) e Vard Promar (2), em Suape. No caso do Promar, a estatal alegou que a empresa não estava cumprindo cláusulas contratuais de prazo. Sobre o EAS, a companhia disse que não vai comentar, numa clara demonstração de falta de transparência com a sociedade e os milhares de desempregados nos estados atingidos. Os dois gaseiros do Promar estão orçados em R$ 300 milhões e a carteira do EAS em US$ 1,7 bilhão. Desde que foi lançado, o Promef só recebeu 12 navios (menos de um terço do pacote global) e tinha previsão de receber as últimas embarcações até o final de 2019.
“Permitir a quebradeira dos estaleiros é um estelionato. Essa derrocada da indústria será ainda maior do que a da década de 90. Naquela época 5 mil trabalhadores foram demitidos e os estaleiros foram sucateados. Muitos operários viraram camelô e os engenheiros taxistas e donos de locadoras de vídeo. Agora o desastre será maior porque a atividade chegou a ter 100 mil funcionários e virou parte da economia de cidades e regiões de Pernambuco, do Rio Grande do Sul e da Bahia. E não adianta colocar a culpa na Lava Jato porque o problema não foi apenas esse. A investigação colocou a Petrobras em crise, mas a desestruturação do Promef já existia. A política não estimulou os estaleiros a fazer o dever de casa. As empresas não são competitivas internacionalmente, mesmo após 10 anos da retomada, porque não se esvoaçaram em melhorar custos e reduzir prazo de construção”, analisa Floriano.
Na avaliação do especialista, a resolução do problema passa por um redimensionamento do programa, que precisa incluir Petrobras, estaleiros, BNDES, Fundo da Marinha Mercante, sócios internacionais das empresas, bancos internacionais e governos dos Estados. “Não adianta o governador de Pernambuco ter uma conversa institucional com o presidente da Petrobras, por exemplo, e reclamar os investimentos que fez. Como também não adianta as empresas procurarem a Justiça em busca de compensar suas perdas financeiras. Ter que existir uma ação conjunta para salvar o Promef e evitar o desastre iminente, porque a deterioração é rápida. Nos anos 1980, no intervalo de um ano o setor estava quebrado”, reforça.
O vice-presidente do Sinaval, Sérgio Bacci, diz que as conversas com a Transpetro tem sido constantes para evitar que o renascimento do setor fique pelo caminho. “O governo precisa manter os investimentos”, defende.
Assista vídeo realizado e exibido pela Transpetro no lançamento do navio João Cândido, no Complexo de Suape, em maio de 2010
Assista o dircurso do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, acusado na operação Lava Jato pelo ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa, de ter recebido propina de R$ 500 mil
Acompanhe parte do discurso do ex-presidente Lula na solenidade