Há seis anos o Brasil escolheu a data 25 de julho para celebrar o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, dia este que também serve para refletir sobre as lutas e fortalecer essa parcela da população em sua busca por respeito e igualdade. As mulheres negras têm, mesmo diante do racismo estrutural da sociedade brasileira, se empenhado diariamente para mostrar que são capazes de ocupar espaços que anteriormente pertenciam apenas à população branca, como é o caso do mercado da beleza.
Apesar das mulheres negras somarem quase 60 milhões de pessoas e serem equivalentes a 28% do povo brasileiro, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a indústria da beleza no Brasil muitas vezes ainda é definida por padrões estéticos com referências associadas às características europeias.
“O padrão de beleza social, que exclui massivamente as mulheres negras, vem desde o período colonial, em que o preto é visto como feio e branco como algo legal”, explicou a historiadora Rayanne Santos.
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Atualmente, existe um empoderamento das mulheres negras em aceitar suas características físicas e exaltar sua beleza, seja por meio de um visual natural dos fios de cabelo ou até mesmo em se assumirem como mulheres pretas.
Amante da cor de sua pele, a fotógrafa Laís Ferreira, 25, viu em seu trabalho a oportunidade de exaltar a beleza preta. No início de julho, a profissional lançou a campanha no Instagram “CADÊ VOCÊS PRETAS?!”, que promoveu ensaios fotográficos gratuitos para mulheres pretas periféricas de Pernambuco.
“Quando comecei não tinha noção da dimensão. A princípio, eu gostaria apenas de ressaltar a beleza preta, mas depois me dei conta que vai além disso. O projeto me deu a chance de contar novas histórias e mostrar que não devemos ter vergonha do nosso corpo apenas por ele ter partes mais escuras ou marcas”, declarou a fotógrafa.
Segundo Laís, a iniciativa, que contou com a participação de 13 mulheres com diferentes idades, tons de pele, tipos de cabelo e corpos, tem o objetivo de fazer com que a mulher preta se empodere e mostre que ela pode ser o que quiser.
“Mulheres que não aceitavam o corpo ou estão em processo de autoaceitação participaram do projeto e se viram lindas. Estamos aqui numa corrente, em que uma ajuda a outra e coloca ela lá para cima”, concluiu.
Ver essa foto no Instagrammodelo: @deza11__ #projetocadêvocêspretas #ferreirafotos #pretaslindas #projetoferreirafotos_
Moradora de Ponte dos Carvalhos, no Cabo de Santo Agostinho, no Grande Recife, a estudante Karina Gomes, 26, foi uma das mulheres pretas que participaram do projeto criado por Laís. Para ela, a experiência serviu para ajudar na aceitação do seu corpo.
“Antes eu tinha vergonha de tirar fotos de biquíni na praia, por exemplo. Depois do projeto passei a ter uma maior aceitação do meu corpo, descobri que posso tirar fotos e ser vista nas redes sociais sem me importar com críticas”, disse a estudante.
À reportagem do JC, Karina explicou que nunca teve problema com a cor de sua pele, mas que observar mulheres negras na internet contribuiu para o seu empoderamento. “Acompanhar algumas blogueiras fez com que eu aceitasse o meu cabelo crespo, por exemplo, e visse que posso ser bonita, me amar”, falou.
Mulher, preta, com fios de cabelo cheios de liberdade para assumir o volume e as formas que quiserem tomar. Essa é Vitoria Zulai, 20, influenciadora digital moradora do bairro do Sancho, na Zona Oeste do Recife, que produz conteúdo voltado para o empoderamento de mulheres e meninas negras com dicas de penteados, moda, maquiagem, entre outras.
Com mais de 11 mil seguidores no Instagram, Vitoria vê como seu papel influenciar no empoderamento das mulheres e também das crianças negras, já que quando era mais nova não teve muitas referências e era influenciada por artistas internacionais, como Beyoncé e Nick Minaj.
“Me sinto super feliz em inspirar minhas seguidoras e ajudá-las de alguma forma, é importante que tenham mais e mais influenciadoras negras. Recebo várias mensagens de meninas que entraram na transição capilar assim que começaram a me seguir, que se encontraram e começaram a se aceitar”, declarou a produtora de conteúdo.
De acordo com a psicóloga Carolina Barros, quando se vive em uma sociedade em que a percepção do mundo é feita pela supremacia branca, é preciso descolonizar os pensamentos.
“A visibilidade contribui para transformação e auxilia no reconhecimento. É fundamental discutir que não há apenas um modelo de beleza e que as mulheres negras percebam que não precisam se negar”, disse a psicóloga.
Ainda segundo a profissional, o lugar de representatividade ocupado pela influenciadora digital é de muita importância para as mulheres que a seguem. “Rupturas são necessárias, é preciso falar sobre negritude e descolonizar os pensamentos”, explicou.
O fato de ser influenciadora faz que a vida de Vitoria tenha uma exposição maior do que a de outras pessoas, o que culmina, consequentemente, em ataques racistas, seja por meio de mensagens pessoais ou até mesmo nas próprias publicações feitas pela blogueira.
“Acredito que na mesma intensidade que as pessoas apoiam, elas também desacreditam, mas sempre confiei muito em mim e no meu trabalho. Sempre tem o dia de sol e o dia da chuva, mas somos fortes”, garantiu Vitoria.
Comparado às brancas, poucas mulheres negras ocupam as passarelas da moda ou trabalham como modelos fotográficas e, mesmo quando conseguem ser inseridas nestes espaços, encontram diversas situações de discriminação ao longo de sua trajetória.
Mesmo tendo guardado na memória a lembrança de, por volta dos 6 anos de idade, chorar em frente ao espelho, pedindo à sua mãe para ser branca, a modelo Raiza Lima, 23, moradora do bairro de Beberibe, na Zona Norte do Recife, conseguiu, ao longo do tempo, trabalhar a sua autoaceitação como mulher preta e símbolo de beleza.
Aos 13 anos, Raiza se achava feia, não tinha amigos na escola e sentava na parte de trás da sala de aula para se “esconder”. Mesmo sem gostar da sua aparência, foi indicada, na época, para fazer testes para entrar para uma agência de modelos. Para sua surpresa, foi aprovada e, a partir disto, começou a encarar um processo diário para se encontrar como uma mulher bonita. “Todo dia é uma luta, porque é o processo de uma vida inteira de autoaceitação”, declarou a modelo.
Em conversa com a reportagem do JC, Raiza recordou de que quando começou a modelar era a única mulher negra a compor o grupo de profissionais na agência que trabalhava, o que fez que ela fosse muito requisitada. No entanto, o que era parecia ser a exaltação da sua beleza, para ela, era visto como uma valorização exagerada.
“Eu me sentia um extraterrestre, porque era como se não fosse possível uma mulher ser preta e bonita e eu era uma exceção”, desabafou.
Modelos negras raramente são consideradas lindas como as brancas. Isto pode ser percebido, por exemplo, no concurso Miss Brasil, que em 63 anos de história elegeu apenas três mulheres negras, nos anos de 1986, 2016 e 2017, como representantes da beleza brasileira.
Ao longo de sua trajetória no mundo da moda Raiza ainda enfrentou discriminação por causa da cor da sua pele e o biotipo de seu corpo, já que tem quadris largos, uma característica física ancestral das mulheres pretas. “Muitas vezes fui pressionada para emagrecer mais que as mulheres brancas, porque eu possuía quadris maiores”, disse.
As dificuldades de Raiza no mundo da moda não pararam por aí. A modelo relatou que quando participa de ensaios fotográficos para uma campanha, é sempre a única negra entre as modelos e, normalmente, tira suas fotos sozinha, diferente das mulheres brancas que são fotografadas em casal, com os homens brancos.
“Só uma vez que fiz ensaio de casal, nas outras eu sempre fotografei só. Além disso, muitas vezes tentaram me induzir para que eu enxergasse outra mulher negra, que trabalhasse na mesma agência que eu, como concorrente, já que a oportunidade de conseguir o trabalho seria minha ou dela e não das duas”, contou.
O preconceito sofrido por Raiza e por tantas outras mulheres negras ao longo de suas vidas deixam diversas marcas. Segundo a psicóloga Carolina Barros, ele pode desenvolver vulnerabilidades emocionais em suas vítimas.
“Elas acabam tendo dificuldades em perceber que são capazes de conseguir alcançar seus objetivos ou manter-se no lugar que conseguiram ocupar, além de estarem em estado de vigilância constante”, declarou.
Apesar dos problemas enfrentados, Raiza não se arrepende de ter escolhido entrar no mundo da moda, Raiza não se arrepende de ter entrado nesse mundo tão glamourizado.
“Tem sido um desafio, porque nunca vou alcançar o padrão que muitos querem, mas me vejo feliz em trabalhar como modelo. A profissão permitiu que eu conhecesse o mundo e quando recebo mensagens de pessoas dizendo que sou linda, para ter força, percebo que todas as dificuldades não foram em vão”, concluiu a modelo.
De acordo com a historiadora Rayanne Santos, mesmo a cultura negra estando presente em músicas, comidas e outras manifestações, a colonização fez com que ela fosse vista como algo ruim. A partir disso, as vestimentas usadas pela população, por exemplo, foram inspiradas nas europeias.
Incomodada com sua maneira de se vestir, desde que passou a se reconhecer como mulher negra e se conectar com essa realidade, a olindense Jéssica Silva, mais conhecida como Jéssica Zarina, resolveu, junto com seu companheiro, confeccionar suas próprias roupas.
“Os modelos de roupas do mercado industrial não estavam me contemplando. Um dia, quando viajei para Salvador, na Bahia, com meu companheiro, vi que lá o movimento negro pulsa muito e se afirma nas roupas, no cabelo. Na volta, trouxemos tecidos para confeccionar nossas próprias vestes e várias pessoas começaram a se interessar por elas. A partir disso, começamos a fazer para vender”, destacou.
Com o significado de “mulher de ouro”, a marca de moda nomeada de Zarina tem o objetivo de expressar a identidade negra de maneira autoral. “A marca se inspira na cultura afro, então ela traz estampas com essências mais próximas da nossa ancestralidade, além dos recortes das roupas terem ligações com símbolos africanos. Também trabalhamos muito com o turbante e com a importância da sua representação”, explicou Jéssica.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Identidades do Brasil, Comunidade Empodera, EmpregueAfro e Faculdade Zumbi dos Palmares entre os dias 31 de março e 02 de abril de 2020, apontou que 72% das profissionais negras são empreendedoras. Dessa porcentagem, 17, 10% investem no mercado da moda, enquanto 10,90% se dedica à beleza.
Atualmente, a Zarina, que existe há cinco anos, é a principal fonte de renda de Jéssica. “Roupa é um viés importante para o autoconhecimento. Vejo muita potência na marca, porque ela representa todo um povo e resgata toda nossa ancestralidade e beleza física. Antes negávamos nosso nariz, boca, cabelo e outros traços”, declarou a empreendedora que já levou a Zarina para grandes eventos, como feira de artesanato e até festival.
“Temos que cada vez mais ocupar espaços e levar a nossa narrativa. O espaço é de todos, a mulher preta tem que estar em todos os locais”, concluiu a empreendedora.
Para a estudante de letras e militante de pautas antirracistas, Adrielly Gomes, 22, a mulher preta desde que nasce já está engajada em uma luta, visto que a sociedade racista aponta para ela e diz que é negra, que deve se odiar e negar seus traços.
“Nos sentimos incomodados, porque entramos em um processo de marginalização, em que somos marginalizadas moralmente e intelectualmente”, explicou.
De acordo com a historiadora Rayanne Santos, quando as pessoas negras deixaram de ser escravizadas, não houve nenhuma base para que elas pudessem se manter. Por isso, até hoje, as mulheres desenvolvem trabalhos com remunerações salariais menores, como de empregadas domésticas.
Como as mulheres pretas sempre foram introduzidas a trabalhar duro, Adrielly considera que os conceitos gerais de cavalheirismo, por exemplo, nunca as contemplou. Mesmo diante das humilhações sofridas pelas mulheres negras, para a militante, em uma sociedade pautada pelo colorismo, mulheres negras de pele clara, mais conhecidas como 'mulatas', não têm privilégios, mas passabilidade, e apesar de serem mais toleradas nos espaços, ainda são vistas como indignas de amor ou respeito.
Muitos desconhecem, mas, a propósito, o termo “mulata” é tido como um ofensivo e deve ser evitado, já que a palavra significa um animal estéril, produto do cruzamento de uma mula com um cavalo.
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Diante disto, surge uma outra pauta na batalha das mulheres negras por respeito: lutar contra a hipersexualização dos seus corpos. “Muitos homens vêem o corpo da mulher preta como um ‘playground’ alternativo e afirmam que não somos dignas de ser amadas, mas usadas”, contou.
De acordo com Rayanne, a hipersexualização desses também são resquícios de quando as pessoas negras eram escravizadas, já que muitos senhores de engenho invadiam as senzalas para violentar sexualmente as mulheres pretas.
“Tem pessoas que se referem às mulheres negras como ‘da cor do pecado’, ou seja, ao pé da letra isso significa que é errado se envolver com elas. O modo que a sociedade foi construída é para que essas mulheres pensem que não servem para casar”, disse a historiadora.
Para Adrielly, as mulheres negras sempre foram tão objetificadas pela sociedade brasileira, que há indícios disso até mesmo em sua literatura. Segundo ela, na obra “Clara”, o autor Casimiro de Abreu desmerece a mulher preta. Veja o poema:
Não sabes, Clara, que pena
Eu teria se - morena
Tu fosses em vez de clara!
Talvez... Quem sabe?... não digo...
Mas refletindo comigo
Talvez nem tanto te amara!
A tua cor é mimosa,
Brilha mais da face a rosa,
Tem mais graça a boca breve.
O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
És clara da cor da neve!
A morena é predileta,
mas a clara é do poeta:
Assim se pintam arcanjos.
Qualquer, encantos encerra,
Mas a morena é da terra
Enquanto a clara é dos anjos!
Mulher morena é ardente:
Prende o amante demente
Nos fios do seu cabelo;
- A clara é sempre mais fria,
Mas dá-me licença um dia
Que eu vou arder no teu gelo!
A cor morena é bonita,
Mas nada, nada te imita
Nem mesmo sequer de leve.
- O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio.
Diante das discriminações de origens históricas enfrentadas pelas mulheres pretas, Adrielly acredita que ter a negritude como resistência promove uma transformação para que as mulheres negras se vejam e tenham forças necessárias para se mover.
“É importante estudar sobre como precisamos amar a negritude, o autoamor é a chave para compreender a nossa beleza e enxergar o que taparam dos nossos olhos. Precisamos empoderar nossas crianças, para que elas não tenham um autoconhecimento tardio. É importante não se contentar com o que a sociedade nos oferece”, concluiu.
Símbolo de resistência, Tereza de Benguela aparece como referência no Dia da Mulher Negra por ser sinônimo de liderança. Tendo vivido durante o século XVIII, ela chefiava o Quilombo do Quariterê, que abrigava mais de 100 pessoas.
“O quilombo cresceu militarmente e economicamente durante o período que foi governado por Tereza. Ele resistiu por duas décadas aos ataques dos militares portugueses por causa da liderança dela, explicou Rayanne Santos.
No Dia da Mulher Negra, Tereza de Benguela surge como uma referência de luta para as mulheres pretas, que desde a abolição da escravatura tem sofrido um racismo institucional.
“A maioria das pessoas que tem poder decisivo nas mãos são homens brancos. A herança dela serve para fortalecer as mulheres negras que lutam a cada dia para atingir uma igualdade social. Ela serve como referência de que as mulheres pretas podem ser grandes líderes", disse a historiadora.