PANDEMIA

'As novas variantes vão matar mais? Posso responder que elas já estão matando', diz virologista da USP sobre covid-19

Para o pesquisador do Laboratório de Virologia do Instituto de Medicina Tropical da USP, José Eduardo Levi, a alta no número de óbitos tem a ver, também, com as novas variantes da doença

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Estadão Conteúdo, Vanessa Moura

Publicado em 04/03/2021 às 23:13 | Atualizado em 04/03/2021 às 23:19
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Após registrar recorde de mortes pela covid-19, desde o início da pandemia, o Brasil se aproxima, mais uma vez, de um dos momentos mais difíceis desde que a doença chegou ao país. Para o pesquisador do Laboratório de Virologia do Instituto de Medicina Tropical da USP, José Eduardo Levi, a alta no número de óbitos tem a ver, também, com as novas variantes da doença. 

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"As novas variantes matam mais? Posso responder que elas já estão matando. Estamos vendo, há três dias seguidos, o pico de mortes do país. Com certeza, em partes, está relacionado com o espalhamento dessas variantes", explicou o virologista em entrevista à Rádio Jornal, nesta quinta-feira (4). 

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Ainda de acordo com o pesquisador, a variante encontrada no estado do Amazonas, na região Norte do Brasil, tem se mostrado mais agressiva que a original.

"Não é que ela mata mais porque o vírus é mais agressivo, ela mata mais porque mais gente está se infectando e o resto da evolução da doença é igual. Isso é o que a gente acreditava, então era só uma questão de mais gente infectada, mais hospitalizações e mais mortes. Porém, temos ouvido, de vários lugares diferentes, que pessoas mais jovens, sem comorbidades, estão adoecendo e permanecendo mais tempo na UTI. Não temos dados científicos para provar, mas parece que esta variante do Amazonas é mais grave do que as variantes anteriores que já estavam presentes no país". 

Com a presença destas variantes, a dúvida que permeia a mente dos brasileiros - e do restante do mundo - é se as vacinas produzidas até agora são capazes de gerar imunidade até mesmo se tratando do vírus modificado. Segundo José Eduardo Levi, a comunidade científica ainda estuda a questão. O que se sabe, até o momento, é que há a possibilidade de algumas vacinas perderem alguma porcentagem de eficácia. 

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"A torcida é para que as vacinas funcionem, porém as evidências, infelizmente, são de que a gente vai ter alguma perda de eficácia em relação a variante de Manaus. Não é que a vacina vai parar de funcionar totalmente, mas a gente acredita, e temos dados mostrando isso, que há uma perda de eficácia. Inclusive, os dados que temos é que essa vacina que a gente utiliza no Brasil, a Oxford, teve uma eficácia bem reduzida frente a variante da covid-19 da África do Sul, que é muito parecida com a variante de Manaus. Gostaria de não dizer isso, mas acho que vai haver uma perda de eficácia. Espero, no entanto, que seja a menor possível", relatou. 

O Brasil registrou 1.699 novas mortes em decorrência da covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados atualizados nesta quinta-feira (4) pelo Ministério da Saúde. Com isso, chega a 260.970 o total de vidas perdidas no País em razão da doença. Além disso, foram contabilizados mais 75.102 casos do novo coronavírus nas últimas 24 horas, elevando o total para 10 793.732. 

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O que se observa, mesmo após cerca de um ano de pandemia, é a alta taxa de ocupação das UTIs em diversas cidades e o colapso de sistemas de saúde em todo o País. Um artigo publicado no jornal britânico The Guardian chegou a prever que, em breve, o Brasil poderá se tornar uma ameaça global com mutações mais letais da covid-19.

Para o pesquisador da USP, neste momento, mais do que nunca, é necessário ter responsabilidade e respeito pelas normas de contenção do vírus. 

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"O que a gente pode fazer pra frear as novas variantes? Observar as regras que todo mundo sabe, e aqui faço uma analogia ao HIV. Todo mundo sabe como se previne do HIV, mas muita gente não usa o preservativo. E é a mesma coisa com o coronavírus. Todo mundo já sabe como prevenir, e não vou ficar repetindo aqui porque é ficar chovendo no molhado. Mas muita gente não está observando essas regras. Então as regras de distanciamento, aliada a vacinação rápida é o que nós temos de melhor para impedir o avanço da variante", finalizou. 

Celeiro de variantes

A disseminação sem controle do novo coronavírus no Brasil está deixando cientistas nacionais e estrangeiros em alerta sobre o impacto que isso pode ter sobre a pandemia como um todo, em especial no surgimento de novas variantes do Sars-CoV-2. Uma preocupação é que o País se torne uma espécie de "celeiro" de mutações, dificultando ainda mais o combate à covid-19.
Quanto mais o vírus circula, e se replica dentro dos seres humanos, maior a chance de ele acumular mutações e gerar novas variantes. É um processo que faz parte da natureza desse organismo, mas é favorecido em cenários de descontrole como o que vemos no Brasil, que enfrenta o pior momento da pandemia em um ano em meio a um relaxamento das medidas de segurança. Enquanto o número de casos e de mortes vem caindo em várias partes do mundo, aqui só tem subido.
Nesse movimento de evolução do vírus, de vez em quando podem aparecer variantes muito diferentes, como é o caso da P.1, que surgiu em Manaus, e também das originadas no Reino Unido e na África do Sul. Por causa disso elas são chamadas de VOCs (variantes de preocupação, na sigla em inglês). Em geral, sabe-se que vírus, no decorrer de uma epidemia, podem apresentar de uma a duas mutações por mês. No caso da P.1 e das demais, foram cerca de 20 de uma tacada só. Por isso elas preocupam.
O motivo para isso ocorrer ainda não é bem compreendido pela ciência. São como os acidentes de avião, compara a imunologista Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da USP. "É uma sucessão de eventos raros. Há milhares de aviões no ar e uma hora ocorrem vários erros e um cai. Mas quanto mais aviões estiverem no ar, maior a chance. Ter 20 mutações em um mês é inesperado. Alguma coisa aconteceu e a gente não entende bem", afirma.
A cientista - que está colaborando com estudos que buscam entender a transmissibilidade da P.1 e como ela pode escapar de anticorpos, permitindo assim a reinfecção - pondera, no entanto, que a variante só se torna um problema quando, além de adquirir muitas mutações, ganha espaço para infectar muitas pessoas. "A P.1 é realmente mais transmissível. Se não tomar cuidado, a chance é maior de se contaminar com ela", diz.
Ainda não há evidências para dizer se esta variante tomou conta da epidemia no Brasil nem se é a responsável pela explosão de novos casos observada na maior parte do País. Sabe-se que a P.1 é a principal linhagem em Araraquara (interior de São Paulo) e em Porto Alegre - cidades que viram seus sistemas de saúde lotarem -, e em Manaus, onde o colapso dos hospitais levou pacientes a morrerem por falta de oxigênio. Apesar do avanço das variantes, o Brasil reduziu no começo do ano o número de sequenciamentos genéticos, essencial para rastrear as cepas.
O virologista Mauricio Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, reforça a ressalva feita por Ester de que o simples fato de a variante com mais mutações surgir não pode ser considerada a única explicação para o cenário de caos que se instalou no País."Estamos dando oportunidade para esse acaso acontecer", afirma ele.
"É muito conveniente para a sociedade, políticos e autoridades afirmarem que a culpa é da variante mais transmissível. Como se tivessem feito tudo para conter o problema, mas a variante tomou conta da cidade. Se tivéssemos tomado as medidas de segurança, não teria acontecido. A forma de prevenir é a mesma: distanciamento social e uso de máscara. O fato é que damos toda a oportunidade do mundo para que o vírus gere a maior quantidade do mundo de mutações", diz.
Nogueira explica que o surgimento das variantes é matemático. "A cada X multiplicações, vai ter mutação. Quanto mais multiplicar, mais variantes vai gerar. Agora no Brasil é onde o vírus mais está se multiplicando, é onde já há o maior número de novos casos por dia. Se essa variante tem a oportunidade de ser transmitida quando a pessoa onde a mutação surgiu pega um avião lotado, vai ao cinema, ao restaurante... aí estamos nos tornando um celeiro de variantes e distribuindo-as à vontade dentro do País", alerta.
 

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