Juiz defende que Lei Maria da Penha deve valer também para homens

Autor de livro que gerou polêmica nas redes sociais diz que lei deve ser igual para todos
Cidades
Publicado em 20/12/2017 às 20:35
Autor de livro que gerou polêmica nas redes sociais diz que lei deve ser igual para todos Foto: Sérgio Bernardo/JC Imagem


Todos são iguais perante a lei. É com base neste princípio, de igualdade, que o juiz Gilvan Macêdo dos Santos, de 67 anos, afirma ter escrito o livro A Discriminação do Gênero-Homem no Brasil em Face à Lei Maria da Penha (Decisum, R$ 200). A obra, que gerou bastante polêmica nas redes sociais, a ponto de ter dois lançamentos cancelados, aborda a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha, considerada uma das maiores conquistas das mulheres no combate à violência doméstica, que atingiu mais de 31 mil mulheres só até novembro em Pernambuco.

“Tudo o que for de lei tem que obedecer a lei maior que é a Constituição Federal, que estabelece o princípio da igualdade. Mas não foi isso que começou a ser visto na maravilhosa Lei Maria da Penha”, afirmou o juiz, salientando que não é contra a lei e a considera bem feita e necessária, mas entende que ela deveria ter a mesma penalidade para homens e mulheres.

“Se o homem lesionar a mulher vai responder por lesão corporal leve e a pena chega a três anos de detenção. Fora isso, ele vai ter que ser afastado do lar, ficar distante dos seus filhos. Se a mulher ferir o homem ela só vai pegar um ano de prisão, vai responder processo num juizado especial, ou da própria delegacia vai pra casa, sem nenhum compromisso com a justiça. Mas a Constituição não prevê essa diferença”, critica.

Gilvan Macêdo explica que atuou na Segunda Vara de Violência Doméstica, quando passou a não aceitar que a mulher desistisse do processo após queixa de agressão, como era previsto na lei, mudança que foi assimilada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) três meses depois. "Isso porque a mulher poderia ser pressionada a desistir", alega, para destacar que seu único objetivo é fazer justiça.

Contudo, o magistrado conta que viu muitos homens chorando pela rigidez da lei. Por isso, o assunto virou dissertação do mestrado que defendeu em Portugal. Casado pela segunda vez, pai de 11 filhos (6 homens e 5 mulheres), ele diz não reconhecer a fragilidade feminina e afirma que muitas vezes as agressões acontecem porque o homem chega em casa sob efeito do álcool e é “provocado pela mulher”. E que o desenho na capa de seu livro (onde uma mulher bate em um homem, que fica recolhido de braços cruzados) é justamente retratando essa situação.

Com 23 anos de magistratura, Gilvan Macêdo observa que o livro, o segundo que escreve, é didático. Chega, inclusive, a abordar os direitos dos homens. Mas assegura que a intenção não é ajudar os advogados a livrá-los das acusações. Ele ri sobre a polêmica criada, diz que faz parte da democracia, mas acredita que o livro foi mal interpretado pela capa, já que só começou a ser vendido nesta quarta, na Livraria Praça de Casa Forte. São apenas mil exemplares, produzidos pelo próprio magistrado. “Tudo o que eu fiz, não mudaria uma vírgula”, conclui.

DESIGUALDADE

“Não há equívoco na nossa leitura, há em não se reconhecer que a gente tem uma profunda desigualdade de gêneros no País e as mulheres vivem um cotidiano de violência que é naturalizada diante de nossa cultura patriarcal e machista. Esse livro está fora da nossa realidade”, rebate, revoltada, Jô Meneses, coordenadora de Programas Institucionais da Gestos, Organização Não-Governamental (ONG).

E continua: “Não tem como não se indignar quando um juiz coloca a Lei Maria da Penha, que conseguimos com tanto esforço, como uma injustiça aos homens, uma minoria em casos de agressão. A lei não discrimina, ela faz justiça, trata as desigualdades. Foi pensada com base na realidade do País, onde as mulheres estão em situação de vulnerabilidade e o Estado tem obrigação de protegê-las”.

Ativista e mestre em direito, Juliana Serretti não vê embasamento legal para a justificativa do juiz. “A lei deve se comportar de maneira diferente para tratar os desiguais. Existe uma violência sistêmica contra a mulher e essa publicação é um desserviço na construção de uma sociedade mais igualitária”, avalia. “Não é um estudo com base científica, é sim uma tentativa de minar uma lei tão importante. Enquanto os homens choram as mulheres estão morrendo, é desproporcional”.

A ativista diz estar feliz com a repercussão da nota de repúdio ao livro que ajudou a produzir e foi divulgada nas redes sociais, sendo assinada por entidades e ativistas de todo o País. “A própria Maria da Penha fez questão de assinar”, observa.

CONFIRA A NOTA DE REPÚDIO 

O Tribunal de Justiça de Pernambuco receberia hoje, em seu salão nobre, o lançamento do livro “A DISCRIMINAÇÃO DO GÊNERO-HOMEM NO BRASIL FACE À LEI MARIA DA PENHA”, de autoria de um magistrado de Pernambuco que já tem em seu histórico profissional a perseguição aos movimentos sociais e a resistência a um judiciário garantidor dos direitos e princípios constitucionais.

O cancelamento do evento horas antes da sua realização não é suficiente para afastar a (ir)responsabilidade da Corte de Justiça do Estado para com a vida das mulheres. No Estado em que o aumento da violência contra a mulher em 2017, tanto em caso de estupro, quanto em caso de feminicídio, atingiu um nível catastrófico, não é à toa que o judiciário se torna cúmplice de métodos, argumentos e elaborações teóricas as quais tendem a manter a situação de vulnerabilidade da mulher.

A histórica resistência de Maria da Penha e de tantas outras mulheres sujeitas à violência doméstica e familiar não pode ser reduzida a uma mera discussão teórica, sem qualquer conteúdo e capacidade de se inserir na realidade do debate. A igualdade enquanto princípio constitucional e necessário para o aprofundamento da democracia, traz em seu significado a compreensão das desiguais condições materiais (econômicas e sociais) que as mulheres possuem em razão da sistemática subjugação dos seus direitos, da sua dignidade e da sua liberdade.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco receber o lançamento de um livro que traz em seu título o esvaziamento da Lei Maria da Penha – um dos mais importantes avanços no combate à violência doméstica e familiar sofrida pelas mulheres – é ter em suas mãos o sangue de Josefa Severina da Silva Filha, Daiane Reis Mota e tantas outras mulheres assassinadas por seus parceiros sexuais.

Não nos calaremos diante da suspeita e injustificável cumplicidade da Justiça de Pernambuco com nossas mortes. Não aceitaremos que nossos direitos sejam esvaziados em alto som nos salões nobres dos poderosos, enquanto nossas mortes são silenciosamente ignoradas. Nenhum direito a menos.

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