Mãe de bebê com microcefalia é símbolo de coragem

Jovem de 22 anos cuida sozinha de três filhos. O mais novo, de 7 meses, nasceu com a malformação. Ela está desempregada e separada do marido
Ciara Carvalho
Publicado em 05/03/2016 às 18:01
Jovem de 22 anos cuida sozinha de três filhos. O mais novo, de 7 meses, nasceu com a malformação. Ela está desempregada e separada do marido Foto: Guga Matos/JC Imagem


Davi mora perto do céu. Mora lá no alto, onde descansam os anjos. Para chegar, precisa ter fôlego. Vencer duas ladeiras e uma escadaria com 105 degraus. Para Milene, é só o caminho que leva seu menino a um mundo de possibilidades. A distância é o que importa menos. Todos os dias, de segunda a quinta, ela sai de casa antes das 6h. Pega dois ônibus e chega ao Imip. Toma outro e desce na AACD. Mais um, corre para a Policlínica Lessa de Andrade. Quando sai direto para a Fundação Altino Ventura, são mais dois coletivos. À noite, de volta, Davi no braço, as costas estão destruídas. Só pensa em dormir. Os outros dois filhos, Miguel e Rafael, de 3 e 2 anos, querem brincar. Milene está exausta. Dona de uma coragem que só as mães conhecem, diz que o seu único e verdadeiro medo é o de morrer e deixar os filhos sozinhos. Principalmente Davi. O resto, a vida ajeita.

Na última quarta-feira, o caçula completou sete meses. É um menino grande. Dez quilos. A pediatra já avisou que é preciso mudar a alimentação, exclusivamente à base de mingau. “Ela acha que Davi já está chegando na obesidade”, preocupa-se. O bebê nasceu prematuro. De oito meses. “Seu filho tem microcefalia”, contaram os médicos na maternidade. Milene está descobrindo, um dia após outro, o tamanho dessa frase. Sabe que haverá limitações. Não sabe exatamente quais. Mas viu-se, para sua surpresa, tomada por uma força que desconhecia ter. “Não sei se eu teria a coragem dela. Davi deixou minha filha muito forte”, reconhece a mãe de Milene, Maria Elizabete. Ouvir a jovem falar do filho é esclarecedor. “Seu sentimento maior hoje é de que?” “De amor. Essa criatura já acorda sorrindo. Do jeito dele, me agarra, me beija. A senhora precisa ver. É uma bênção em minha vida.” Entre tantas angústias e incertezas, é de amor que Milene prefere falar.

Foi para a casa da mãe, em um dos morros do bairro de Nova Descoberta, na Zona Norte do Recife, que ela se mudou, no final do ano passado, carregando os três filhos. Tinha, de novo, se separado do marido. Havia, de novo, apanhado dele. A agressão, na véspera de Natal, aconteceu, como sempre, sob os olhos das crianças. “Ele me deu um tapa na cara e rasgou minha roupa. Saí do jeito que estava, levando os meninos. Prometi a mim mesmo que seria a última vez.” Já havia feito essa promessa antes, mas, nem ela sabe direito porque, sempre voltava. “Ele já chegou a pegar um facão e encostar no meu pescoço, dizendo que ia me matar.” A primeira vez que apanhou estava de resguardo do filho mais velho, Miguel. A criança, de tanto ver o pai bater na mãe, começou a ficar agressiva. Chegou a dizer, já agora, morando na casa da avó, que homem tem que bater em mulher. Milene quer levá-lo ao psicólogo. Só não sabe como e quando.

O marido praticamente não telefona para saber dos filhos. Na quarta-feira, mandou uma mensagem: “Mãe dá um beijo no meu boneco que ele está fazendo sete meses hoje”. Milene nem se deu ao trabalho de responder. “Não adianta. Minha conversa com ele vai ter que ser na Justiça.” Sozinha, precisou largar o emprego para cuidar de Davi. A mãe e o pai também estão desempregados. Com a chegada de Milene e dos filhos, agora são nove pessoas morando na casa. Ela e as crianças se instalaram na cozinha. Num cantinho, o berço de Davi. Miguel e Rafael dividem o beliche de baixo. À Milene, sobra a cama de cima. Quase sempre, entre terapias, consultas e exames do filho, passa o dia na rua sem comer. Almoça quando alguém divide com ela a comida. Dias atrás, precisou tirar o CPF de Davi. Sete reais. Conseguiu o dinheiro com um vizinho.

Tem vivido praticamente de doações. Ouviu da terapeuta que Davi precisa ser estimulado com objetos coloridos, que façam barulho. Mas o menino não tem brinquedos. Nenhum. Os poucos dos irmãos ou são muito grandes ou estão quebrados. Ela ainda conseguiu comprar um chocalho, mas os irmãos mais velhos, que não param quietos, terminaram quebrando.

Num ambiente de tantas ausências, o que mais dói não são as privações, o cansaço. O que mais machuca é o olhar do outro. Fere tanto quanto a palavra. E as palavras são de uma violência que tira o chão. “Que coisa mais feia. Parece um ET”. Milene não acreditou no que ouviu. Estava na fila do INSS para solicitar a aposentadoria do filho. Uma senhora, sentada, disparou a frase. Tem sido assim. Por onde ela passa, olhos e dedos apontam o diferente. “Como se ele fosse uma aberração, sabe?” Ela finge que não ouve, que não vê, que não sente. Já sugeriram que ela colocasse um gorro ou uma toca na cabeça de Davi, para escapar dos olhares. Ela se recusou. “Não vou esconder meu filho. Não vou ter vergonha dele. Ele é lindo. É único. Não comparo ele com o filho de ninguém.”

Milene Helena dos Santos Ferreira, mãe de Miguel, Rafael e Davi, desempregada, separada, agredida repetidas vezes pelo ex-marido, tem só 22 anos.

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