Neuropediatra Ana Van der Linden faz medicina com o coração

Responsável por identificar os primeiros casos atípicos de bebês com microcefalia, médica reafirma sua fé numa medicina voltada, sobretudo, para as pessoas
Ciara Carvalho
Publicado em 08/03/2016 às 7:30
Responsável por identificar os primeiros casos atípicos de bebês com microcefalia, médica reafirma sua fé numa medicina voltada, sobretudo, para as pessoas Foto: Guga Matos/JC Imagem


A senhora se permite chorar?

No hospital, não. Eu só choro sozinha.

Mas já ocorreu de ir para uma salinha, um cantinho, sem ninguém ver?

Não. Aqui (no Imip) eu não posso. Aqui eu sou médica. Eu só choro em casa.

E como faz com a emoção?

A emoção existe. Mas eu penso: Se eu chorar, o que vai ser delas?

 

Nos últimos seis meses, descobrir “o que vai ser delas?” tem sido praticamente a vida da neuropediatra Ana Van der Linden. “Delas”, leia-se, as mães de bebês com microcefalia. Ana está no começo de tudo. Foi ela a primeira médica, em conversa com a filha Vanessa Van der Linden, neuropediatra igual à mãe, a identificar um número atípico de nascimentos de bebês com a malformação. O mês: setembro de 2015. Primeiro, surgiu um caso no Imip. Na semana seguinte, outro. “Medicina é de par. Quando a gente vê um caso diferente sempre vem outro na sequência.” A máxima, tantas vezes repetida pela médica, aqui teria outro desfecho. Em duas semanas, nove casos de crianças nascidas no hospital com a malformação. “Aí eu disse: agora as coisas mudaram. Algo novo está acontecendo. Alguma coisa está errada.” Como se sabe, ela tinha razão.

A velocidade com que tudo aconteceu e a gravidade do que se tem visto têm deixado marcas profundas em Ana. Como mãe e médica. “Eu saio daqui cansada, como se tivesse levado uma surra. Quando eu vejo uns dois bebês, dá para aguentar. Mas quando vejo uns quatro...” Ana se parte por dentro. Mas isso, só ela vê. “Porque você tem que mostrar essa força. Fraqueza não pode fazer parte de seu semblante. Pelo contrário, tem que rir. Tem que brincar. E dizer assim: ‘olha, ele fez isso, mãe! Amanhã vai ainda mais longe.’” Medicina é fé. É, antes de tudo, acreditar.

Setenta e cinco anos de vida. Cinquenta, de profissão. Os anos são apenas uma forma de contar o tempo. A doutora Ana é uma mulher de hoje. Sua vida é agora. “Modernidade é maravilhoso, é evolução. Quando você deixa de evoluir, você para. E começa a regredir.” Ela tem como regra não olhar o passado com saudosismo. “Não sou daquelas que dizem: Ah, no meu tempo...” Gosta do progresso porque, como médica, a tecnologia lhe deu possibilidades de ir mais longe: nos diagnósticos, nas pesquisas, na missão de salvar vidas. “Eu aprendi medicina sem ter tomografia, sem ter ressonância.” Cita, justamente, dois exames essenciais na atual batalha para entender até onde a infecção por zika vírus compromete o cérebro dos bebês com microcefalia. Diante do exercício de imaginar como seria lidar com uma explosão semelhante de casos de malformação, em décadas passadas, a médica reconhece: “A gente só veria o tamanho pequeno da cabeça e não conseguiria ir muito além”.

Mas nem tudo na medicina moderna lhe agrada. Quando ensina aos jovens médicos residentes em neuropediatria, ensina sobretudo que medicina é confiança. A impessoalidade e a pressa dos tempos de hoje são um prejuízo tanto para o médico quanto para o paciente. “Antigamente você era a doutora Ana, a neurologista. Agora você tem ‘a neuro’, ‘a fono’, ‘a gastro’. Muda de plano, muda de médico. Despersonaliza a relação. Corta o vínculo. Perde parte do sentido da medicina, que é a troca, a construção.”

Casada durante 23 anos com um neurocirurgião (o marido faleceu em 1987), o amor pela medicina contaminou a família. Os três filhos são médicos. Todos trilharam o mesmo caminho da mãe e atuam com crianças. Mas a neuropediatria não foi a primeira escolha de Ana. Ela trabalhava com adultos. Até o destino lhe obrigar, recém-formada, a tirar as férias de outro médico na pediatria. Foi paixão imediata. Detalhista, dedicada, foi estudar tudo de novo. “Eu que tinha me preparado até ali para tratar adultos, fui aprender como cuidar de crianças. Fui buscar outras competências pra lidar com essa criança de uma forma mais completa.” Nesses anos todos, aprendeu uma coisa que lhe acompanha até hoje: “Escutar as mães é fundamental. Porque elas percebem as mínimas variações de seus filhos. São olhos atentos que nos ajudam muito”.

No mês passado, quando visitou o Imip, a diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margaret Chan, fez questão de conhecer Ana e sua filha Vanessa. Numa sala reservada, longe dos jornalistas e dos flashes dos fotógrafos, a chinesa pegou a mão das duas e agradeceu, emocionada. “Tivemos que dar a ela uns cinco lenços de papel. Até ela se recompor.” Mulher de gestos, mais do que palavras, Ana diz acreditar no empenho pessoal de Chan para conseguir dinheiro para as pesquisas sobre zika vírus e microcefalia. A diretora é da mesma escola de Ana. “Pelo que vi, ela não é só gestora. É uma pessoa humana que se preocupa com o outro.”

 

E o que é medicina para a senhora?

Minha vida. É o que eu gosto.

Existe medicina sem o humano?

É difícil. Embora se faça (ela diz isso, chorando).

“Eu disse que não me emociono? Me emocionei.”

 

Postura firme, jeito sério, não são poucas as vezes que, numa impressão ligeira, pode ser vista como uma pessoa chata. “Mas eu sou é tímida. No tempo de colégio, passei quase um ano sendo chamada de Rosa e eu atendia porque eu não tinha coragem de dizer que eu era Ana.”

Ana Van der Linden, mãe de três filhos, avó de seis netos, é vaidosa, apaixonada por jardinagem e acha que a medicina é, antes de mais nada, saber ouvir. Uma médica de antigamente, no melhor sentido da palavra.

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