Do quarto, presa à cama, dona Vanda só ouviu os tiros. Ficou paralisada. Gritos, disparos, silêncio. Os assassinos entraram e fugiram pelos fundos da casa. Quando conseguiu chamar a filha, nenhuma resposta. Só ouviu novamente a correria. Parentes gritando e dois corpos crivados. Em um quarto, a filha, Éricka Patrícia de Oliveira e Silva, 39 anos. Na sala, a vizinha Luzinete Cassimiro Cavalcante, 54. Por problemas de saúde, dona Vanda Ribeiro, 69, não consegue andar. Vive praticamente o dia inteiro em cima da cama. Perplexa, acompanhou a tragédia do quarto. Não quis ver a filha morta. “Prefiro guardar a imagem dela sorrindo, feliz.” Éricka e Luzinete foram mortas no dia 27 do mês passado, no Alto Santa Terezinha, na Zona Norte do Recife. Entraram para uma estatística assustadora: o mês de junho contabilizou 37 assassinatos de mulheres no Estado. É o pior registro desde 2007, quando a série histórica começou a ser acompanhada. Em relação ao mesmo mês do ano passado, os dados representam um salto de 76% no número de mortes. Um extermínio para o qual o poder público ainda não tem explicação.
As primeiras semanas de junho já indicavam que a curva seria atípica. Em 15 dias, 16 mortes. Já era, naquele momento, um número maior do que todo o mês de maio, que fechou em 14 assassinatos. Quando comparada a evolução de um mês para o outro, a diferença é alarmante: 160% a mais de casos de homicídio contra a mulher. A média, desde o início do ano, vinha em torno de 20 mortes, por mês. Um número já considerado alto. O sinal vermelho acendeu. As estatísticas deixaram os gestores perplexos. Com os dados nas mãos, a Secretaria Estadual da Mulher levou o problema, na semana passada, para a reunião da câmara técnica do Pacto pela Vida, programa do governo estadual de enfrentamento de todos os crimes de homicídio no Estado. Sob qualquer aspecto, o retrato é preocupante. Considerando o total de assassinatos praticados em Pernambuco em junho (333 mortes), cerca de 10% tiveram mulheres como vítimas.
Dos 37 assassinatos, a maioria aconteceu no Recife (9). Mas em todas as regiões do Estado foram registrados homicídios. Só em Caruaru, no Agreste, houve três mortes. O levantamento aponta que, pelo menos, 15 desses assassinatos foram consequência de violência doméstica, onde as mulheres acabaram mortas por companheiros, ex-companheiros ou parentes próximos. Os outros 22 crimes ainda estão sendo investigados pela polícia. É o caso do assassinato de Éricka e Luzinete. No Alto Santa Terezinha, os moradores preferem não comentar sobre o duplo homicídio. Há suspeitas de que o crime poderia ter relação com o tráfico de drogas ou com um desentendimento entre vizinhos. Assustada, a família diz que não quer ir atrás dos culpados. “Para quê? O pior já aconteceu. Mataram a minha filha. Agora ficou uma ferida dentro de mim, um vazio que não vai passar nunca”, lamenta dona Vanda.
O salto na estatística foi tão alto que o Departamento de Polícia da Mulher (DPMul) decidiu ontem criar um Núcleo de Estudos de Feminicídio para se debruçar sobre cada um dos 37 assassinatos ocorridos no mês passado. O objetivo é identificar cada uma das motivações e gerar políticas públicas para barrar o crescimento de homicídios contra a mulher. “O número deixou a todos nós extremamente preocupados. Se você me perguntar uma razão para justificar esse aumento, hoje não é possível apontá-la. Mas a ideia do núcleo é justamente monitorar isso de perto, buscar explicações, cruzar dados, apontar causas”, explicou a gestora do DPMul, a delegada Inalva Regina.
Ontem a policial passou a manhã reunida com a secretária estadual da Mulher, Silvia Cordeiro, para traçar estratégias de enfrentamento contra o crescimento dessa violência. “A natureza de muitos desses crimes tem requintes de barbárie. Já podemos afirmar que cerca de 20 desses homicídios se tratam de feminicídio, situação em que a mulher é morta pela condição de gênero. Temos que combater isso duramente. Apesar do grande número de casos de crime passional, não podemos lidar com essa estatística como se fosse uma banalidade”, afirmou Silvia Cordeiro.
A secretária garante que a explosão de mortes registrada no mês passado não está relacionada à falta de assistência ou à redução nos serviços de proteção oferecidos no Estado. “Pelo contrário. Estamos ampliando a rede. São dez delegacias especializadas, o número de abrigamentos aumentou. Estamos trabalhando, mas é preciso avançar ainda mais. Vamos rever estratégias, aprofundar as informações, fazer o que for necessário para barrar esse quadro”, diz Sílvia Cordeiro.
A Secretaria de Defesa Social já contabiliza 133 homicídios de mulheres nos seis primeiros meses deste ano. E a curva só faz crescer. O monitoramento feito pela SDS aponta que julho começou igualmente sangrento. Foram 11 assassinatos nos 11 primeiros dias do mês. Uma morte por dia. A matança continua.