Parecia um pesadelo. Paula, 54 anos, acordou com o marido em cima dela. Com uma mão, ele tentava estrangulá-la. Na outra, segurava um ferro de passar roupa ligado na tomada. Sem permitir qualquer reação, ele foi queimando todo o corpo da mulher. Pernas, costas, peito, braço, barriga. A dor dilacerante quase a fez desmaiar. Ela não conseguia gritar, pedir socorro. Quando finalmente se desvencilhou, seu corpo carregava queimaduras de 2º e 3º graus. Foram 23 dias internada no Hospital da Restauração, 12 anestesias gerais para que os curativos fossem feitos. As sessões de fisioterapia, com psicólogo e psiquiatra se estendem até hoje. Passado exato um ano daquela madrugada de horror, Paula mudou de cidade, de vida, recomeçou. Às vezes, quando enxerga seu corpo marcado, se vê perguntando: “Por quê?” Mas a psicóloga já alertou para que ela não trilhe esse caminho. Tentar entender pode ser perigoso, paralisa. Tem coisa que não há por quê.
O marido de Paula chegou a ser preso. Mas ficou só 2 meses e 9 dias na cadeia. Ela espera até hoje pelo dia do julgamento, que ainda não tem data marcada. “A Justiça finalmente será feita”, diz. Mas, enquanto espera, Paula aprendeu a ser forte, “eu quase enlouqueci”, foi salva, diz, pela fé e religiosidade. Mesmo machucada, carrega uma paz na fala que ilumina. Para esta reportagem, pediu apenas que seu nome fosse trocado, sua identidade, preservada. Aceitou contar sua história muito mais pelo outro do que por ela. “Em que eu posso ajudar alguém com isso que eu passei? Se a minha dor servir para abrir os olhos e a consciência de outras mulheres, ficarei feliz. Ainda há muito o que avançar.”
Foram 34 anos de casada, 54 de vida. Dois filhos, netos. Na noite em que Paula foi acordada com o corpo queimando, não houve discussões, brigas, nada de anormal. Os dois chegaram da missa, conversaram, ela foi dormir. Também não havia histórico de violência física. Uma vez, há mais de dez anos, ele ficou alterado. Mas ela deixou para lá. Na época nem existia a Lei Maria da Penha. Agora existe e ela não aceitou ficar calada. “Ele pensou que eu não teria coragem de revelar a crueldade dele. Quando eu resolvi denunciar, sabia que talvez a polícia nem fizesse muita coisa. Um revólver alcança você a quilômetros de distância. Mas eu dizia para mim mesma: eu tenho que fazer isso, denunciar. Se eu não fizer, aí é que ele vai achar que pode fazer o que quiser comigo.”
Por tudo que viveu e sofreu, ela insiste: quebrar o silêncio é o mais importante e o mais difícil. “Quantas não foram e são machucadas? Porque nossa educação foi e ainda é assim. Mesmo agredida, a mulher tem que perdoar. Pensar no casamento, nos filhos, na casa, menos nela.” Ao falar do marido, guarda para ele apenas um sentimento: pena. “Acho que por isso eu me recuperei, de certa forma, até mais rápido do que eu acreditava ser capaz.” Ela fez uma escolha: não quis carregar mágoa. “Não adianta. Não chega até ele. Só ia me destruir. A pessoa que carrega ódio no coração não sara, não cura. Eu tô curada porque o deixei para trás.” Claro, tem dias, ela fraqueja, se sente para baixo, lembra da dor insuportável que sentiu, mas sabe: não vai mais enlouquecer. “Eu até me dou o título de vencedora.”