Quase uma semana após a tentativa de assalto que acabou com a morte do estudante Edvaldo José Valença da Silveira Neto, de 21 anos, em Goiana, na Mata Norte de Pernambuco, os pais do jovem falaram pela primeira sobre o crime que chocou o Estado. Em entrevista exclusiva ao Jornal do Commercio na manhã dessa terça-feira (15), a enfermeira Mônica Araújo, de 42 anos, e o empresário Edvaldo Rodrigues, de 43, receberam a reportagem no apartamento onde a família mora no bairro dos Aflitos, na Zona Norte do Recife, para falar sobre a vida e os sonhos deixados por Edvaldo. Os pais lembraram dos últimos momentos que estiveram ao lado do filho e dos planos interrompidos - entre eles, um intercâmbio para a Irlanda que aconteceria em 2018. Na conversa, a família revela que um dos motivos que levavam o filho a querer sair do Brasil era o medo da violência e cobram atenção das autoridades para a crise na segurança pública enfrentada pelo Estado. Ao lado das filhas mais novas, Camila, de 17 anos, e Júlia, 11, da avó materna e de uma tia, dona Mônica e seu Edvaldo contam como a fé tem ajudado neste período de superação. Afirmam que organizarão um projeto social em memória do filho e falam sobre os suspeitos de participação na morte do jovem.
Jornal do Commercio: Qual foi a última vez que vocês estiveram com o Edvaldo?
Mônica Araújo (mãe): Eu o vi no domingo antes dele voltar para Goiana onde passava a semana trabalhando com a avó, mas falava sempre com ele por telefone. Inclusive ele me ligou pouco antes do ocorrido combinando para se encontrar comigo aqui no Recife e ir assinar o contrato do intercâmbio que ele iria fazer para a Irlanda no ano que vem. Foi uma ligação rápida, me pediu a benção e desligou.
Edvaldo Rodrigues (pai): Eu passo a semana em Goiana, então estive com ele na quarta-feira no café da manhã. Ele era sempre o último a descer, me encontrei com ele rapidamente e viajei com meu pai para João Pessoa. Quando voltei à noite, ele estava ouvindo música no quarto com os fones de ouvido como ele gostava de fazer. Na quinta eu saí cedinho e só vi ele quando cheguei no local do crime.
JC: Como ele estava nesses últimos dias?
Mãe: Bem tranquilo. Ele viajou no domingo para Goiana e eu até sugeri que ele só fosse na segunda, mas ele disse que, se fosse na segunda, poderia perder metade do expediente.
JC: Qual fase da vida que ele estava vivendo?
Mãe: Ele vinha num momento de grande maturidade. Naquela coisa de querer ser independente, de tentar crescer financeiramente, tentando poupar uma parte do dinheiro para viajar.
Pai: Estava num momento de criar responsabilidade. Eu chegava em casa e dizia: "olha, Kika (apelido da mãe), ele está fazendo um trabalho tão direito no cartório. Pegou o serviço, super rápido, desenrolado. Só quando chega a hora de almoçar que fica num pé e noutro, chamando a vó, dizendo que está na hora.'Bora, vó! Bora, vó!".
JC: Como foi essa decisão de ir morar em Goiana?
Mãe: Ele quem decidiu. Estava fazendo faculdade de Direito, mas não estava se encontrando no curso, então aceitou o convite da avó para trabalhar no cartório da família, enquanto pensava em outro curso. O sonho dele era morar fora do Brasil por conta da violência daqui. Ele reclamava muito da violência. Ele era revoltado com a violência. Mais recentemente, ele estava envolvido com plantação de abacaxi na fazenda da avó e disse que, se voltasse para o Brasil, iria fazer agronomia.
JC: O que ele falava sobre a violência?
Mãe: Ele era indignado e ficava muito triste, muito mal. Ele sempre me mandava alguma notícia me perguntando como eu aguentava viver numa sociedade com tanta violência.
JC: O Edvaldo era o mais velho de uma família de três irmãos. Como ele era como filho?
Mãe: Ele era parecido com o pai. Era uma pessoa muito boa, muito carinhoso com as irmãs, principalmente com a mais nova, com os primos pequenos. Ele é muito ligado com a família. Não era religioso, meu sonho era vê-lo religioso, mas a religião dele era a bondade. Não gostava de preconceito, combatia o preconceito!
JC: Seu Edvaldo, qual a memória mais antiga que o senhor tem do seu filho?
Pai: Quando ele nasceu, eu tinha a idade que ele tem hoje e o nascimento dele motivou o meu amadurecimento. Minha mãe me deu uma padaria para eu cuidar e eu ainda me lembro de quando ele voltava da escola em uma bicicleta daquelas de entregar pão com um dos nossos funcionários. Sempre muito sorridente. Pequeno, inocente, treloso, tudo gostava de descobrir primeiro que os outros.
JC: Como vocês ficaram sabendo da morte do Edvaldo? Como foi a sensação de receber a notícia?
Pai: A mãe estava no Recife e telefonaram para ela. Eu estava na fazenda e um amigo me ligou dizendo que tinham atirado nele e que ele tinha batido o carro. Eu fiquei desesperado, só queria saber se ele estava bem, se já tinham socorrido ele. Peguei o carro e fui dirigindo com um amigo. Quando cheguei no local, um primo se encontrou comigo e disse que ele estava morto. Corri pro carro e minha irmã já estava do lado, guardando ele. Há 20 anos, ela tinha perdido uma filha com meningite. Minha vontade era só de abraçá-lo, peguei na cabeça dele e minha irmã disse que não adiantava mais mexer. Do lado dele, estavam os óculos dele. Senti aquele vazio, sabe? Eu acho que, até agora, não tenho sentimento de vingança, de revolta. Eu tenho sentimento de perda, sentimento de não ter podido abraçar ele e dizer alguma coisa para ele.
Mãe: Eu fui para Goiana e pedi para me esperarem. Quando cheguei na funerária, eu achei que ia me desesperar, mas não. A pele dele estava quentinha e aquilo me deu uma paz de espírito muito grande.
JC: Essa paz vem de onde? Como vocês avaliam essa capacidade de aceitação. De onde vem essa força?
Mãe: Da fé em Deus. De saber ele continua sendo meu filho amado, que ele está junto de Deus. Eu sei que ele precisa me ver bem. E eu me apego a Deus e à Nossa Senhora que me coloca sempre no colo. Uma hora, vamos estar juntos de novo. Hoje, estamos em planos diferentes, mas a conexão continua, o cordão umbilical não foi cortado, nos amamos do mesmo jeito. Muita saudade dele, eu olho as coisas dele com uma tristeza imensa, mas eu tenho a certeza que ele está bem. Deus me dá sentido para viver. E eu tenho sentido para viver, até porquê ele queria que eu vivesse. Eu estou triste, mas sei que vai passar, porque Deus está comigo. Deus permitiu isso para que todos nós sejamos pessoas melhores e eu já sou uma pessoa muito melhor. Me lembro muito das palavras do meu filho de nunca julgar ninguém, de não ter preconceito, e vou usar para minha vida.
JC: Infelizmente, nós sabemos que Edvaldo é um entre muitos jovens que morrem diariamente vítimas da violência em Pernambuco e no Brasil. O que vocês têm a dizer para outros pais e mães que passam pela mesma dor que vocês estão passando?
Mãe: Eu concordei em falar com você por conta disso. Eu quero ser exemplo de fé e de força. Eu quero que as pessoas saibam que é possível ter uma perda imensa dessas e ainda assim ter fé em Deus e se apegar nele. Agora, somos uma família muito mais unida, os amigos foram imprescindíveis nesse momento.
JC: A senhora falou que Edvaldo era revoltado com a violência e vocês acabaram vendo o filho de vocês morrendo disso que ele tanto odiava. Apesar do pouco tempo, vocês já fazem alguma reflexão sobre o momento de violência que a sociedade está enfrentando?
Mãe: Eu espero que o sangue dele não tenha sido derramado em vão. Que isso chame atenção das autoridades para que as pessoas tentem melhorar essa questão da segurança para que nenhuma família passe mais por isso que nós estamos passando. Só as autoridades podem resolver. E que as pessoas mudem, que amem mais uns aos outros. Dizer às mães que, qualquer que seja o motivo que faça com que as mães percam os filhos, que se apeguem a Deus. É uma dor muito grande. Se o nascimento de um filho é a melhor sensação que uma mãe pode ter, imagine perder um filho, invertendo a lei da vida, que nos prepara para perder nossos pais. Mas é possível viver com Deus.
Pai: Ele não foi o primeiro, ele não vai ser o último. Mas que seja o primeiro passo para melhorar, para que outras pessoas não passem por essa situação. Que, talvez, os nosso governantes possam planejar leis para que se possa melhorar isso. Que isso seja um passo para que as pessoas se solidarizem e que isso diminua. Porque foi com a gente, mas a gente sabe que acontece todos os dias. E quantos casos não ficam impunes?
JC: A Polícia Civil identificou os suspeitos de matar Edvaldo e já realizou algumas prisões. Um adolescente foi apreendido e dois adultos foram presos, um deles na noite de ontem (segunda-feira). O que vocês pensam das pessoas que fizeram isso com o Edvaldo? Conseguem ter algum tipo de sentimento com relação a eles?
Mãe: Quero apenas que eles fiquem presos. Eu quero que eles fiquem presos! Nada além disso. Não quero que ninguém morra. Nada disso. Quero que a Justiça do homem seja feita. Meu filho não teve oportunidade nenhuma de escapar. Eles têm que cumprir a pena deles.
JC: Perdoa?
Mãe: Olha, eu não tenho ódio, não tenho raiva no meu coração. Sou capaz de perdoar, aliás não sou eu que perdoo. Se eles se arrependerem, quem vai perdoar é Deus. Não quero ter nenhum sentimento ruim para com eles.
Pai: Eu acho que, no momento, se eu dissesse que tenho ódio, eu estaria mentindo. É um sentimento de indiferença, totalmente indiferente com esse pessoal. Mas eu vou tentar acompanhar, não vou ficar ausente disso, quero ver o fim, o desfecho. Que eles sejam julgados e, se forem culpados, condenados, e que cumpram. Nada que eu vá fazer...
Mãe: vai trazer o nosso filho de volta!
JC: Agora com a morte de Edvaldo, vocês têm um projeto social ligado à plantação de abacaxi que ele cultivava na fazenda da família. Como é que esse projeto vai funcionar?
Pai: Faz pouco mais de três meses que plantamos o abacaxi e a colheita é longa. Ele deve ser colhido nessa época do ano que vem. A plantação era dele. O ganho que tivesse era dele e nós não queremos. Esse ganho que houver será para as pessoas menos favorecidas. Para que, pelo menos, alivie o sofrimento de alguém e, com isso, ele (Edvaldo) cresça onde quer que ele esteja.
JC: Qual o legado que Edvaldo deixou?
Mãe: Alegria, felicidade, zero preconceito, nada de egoísmo. A sensação é que não o perdi. Não vou mais sentir a pele, não vou mais beijar, mas ele continuará sendo meu filho, onde quer que ele esteja. Sou muito grata a Deus por ter sido a mãe dele. É uma sensação de dever cumprido.