Um estudo desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz em parceria com a organização Médico Sem Fronteiras (MSF), mostrou que profissionais de saúde sabem pouco sobre métodos de diagnóstico e tratamento da Doença de Chagas no Brasil. O resultado da pesquisa foi divulgado na Universidade de Brasília às vésperas do Dia Mundial de Combate à Doença de Chagas, lembrado neste sábado (14).
Entre os profissionais de unidades básicas de Saúde ouvidos em seis municípios brasileiros, apenas 32% conheciam os procedimentos de diagnóstico da doença. Quando questionados sobre o tratamento da doença, 41% afirmaram saber que existe um medicamento específico para a doença, mas somente 14% sabiam dizer o tipo de medicamento indicado.
O epidemiologista da Unidade Médica Brasileira do Médico Sem Fronteiras, Juan Carlos Cubides, explicou que o objetivo do estudo era justamente mostrar a negligência com a doença de Chagas no país e documentá-la, pois faltam números oficiais sobre o problema.
Segundo ele, o resultado do estudo demonstra a invisibilidade da doença nas unidades básicas de saúde. “Muitas vezes o médico tem um paciente com sintomas de Chagas mas ele não pensa na doença. Não sabe fazer o diagnóstico e nem que medicamento utilizar”, disse. “Isso contrasta fortemente com o que acontece nos Centros de Referência, obviamente, onde 90% dos profissionais conhecem os testes de diagnóstico e o tratamento indicado.”
O levantamento foi feito com profissionais de saúde, gestores e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) em seis cidades brasileiras com histórico de casos de Chagas ou que têm centros de referência para o tratamento da doença e demonstrou que entre os usuários também há muita desinformação. Entre os 177 usuários das unidades básicas ouvidos, que não têm a doença, menos de 30% sabiam que é possível curar a doença na fase aguda.
No total, foram entrevistadas 269 pessoas, sendo 230 usuários do SUS, 53 pessoas afetadas por Chagas e 39 profissionais de saúde e gestores.
A analista em Assuntos Humanitários do MSF, Vitória de Paula Ramos, destacou que a doença de Chagas faz parte da lista de doenças negligenciadas da Organização Mundial da Saúde. “As doenças negligenciadas como um todo fazem cada vez menos parte dos currículos das universidades, então os próprios profissionais de saúde desconhecem o tema”, disse.
Ela explicou que essas doenças afetam populações também negligenciadas, que vivem em situação de pobreza e que têm acesso escasso a cuidados com a saúde. “Além disso, existem poucos recursos para pesquisas e desenvolvimento de novos medicamentos e formas de diagnóstico. Essas doenças são muitas vezes esquecidas nas políticas públicas, há poucas políticas para endereçar e resolver o problema dessas doenças. Algumas podem ser erradicadas, outras não, mas todas podem ser pelo menos controladas, como é o caso da doença de Chagas.”, explicou.
Segundo Vitória, o Brasil evoluiu muito no que diz respeito a frear a transmissão da doença, mas agora precisa avançar no diagnóstico: “Foram feitos muitos esforços em relação ao controle do vetor que transmite a doença, o inseto conhecido como Barbeiro, então nas últimas décadas teve esse investimento muito grande, porém nunca foi dado o segundo passo, que é dar atenção a essas pessoas que foram infectadas há décadas e aos novos casos também.”
Vitória Ramos esclareceu que atualmente ainda há novos casos registrados no país, especialmente pela transmissão oral, que ocorre por ingestão de alimentos contaminados. “É muito menos expressivo do que já foi um dia, mas ainda existe. O que estamos pedindo agora é que as políticas se voltem para as pessoas afetadas por Chagas, que essas pessoas possam ser diagnosticadas e tratadas na atenção básica de saúde.”
A estimativa da Organização Mundial da Saúde é de que hoje entre 6 e 8 milhões de pessoas no mundo estão infectadas. No Brasil, de acordo com dados do Ministério da Saúde, entre 1,9 milhão e 4,6 milhões de pessoas são afetadas pela doença de Chagas e cerca de 6 mil morrem anualmente devido a complicações crônicas.
A cardiologista Andréa Silvestre de Sousa, pesquisadora em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, explicou que a doença de Chagas é uma doença infecciosa causada por um parasita, o protozoário Trypanosoma cruzi, que entra na corrente sanguínea. A doença tem duas fases bem definidas, uma aguda, muitas vezes assintomática, e uma crônica. “Se a doença for diagnosticada na fase aguda há chances de cura com o tratamento”, explicou.
O medicamento usado para o tratamento de Chagas é o mesmo usado há décadas. “Como é uma doença negligenciada, ainda se usa o mesmo remédio que foi desenvolvido na década de 1960, o benzonidazol, mas é importante destacar que ele pode curar ou diminuir as taxas de progressão da doença para a fase crônica”, disse.
Se a doença não for tratada, o paciente pode permanecer com o parasita no sangue por décadas de forma latente, sem nenhum sintoma e sem saber que está infectado. “A pessoa não sabe que está infectada, desconhece as consequências da doença caso se torne crônica e não busca esse diagnóstico, até passar para a fase crônica.”
Na fase crônica e sintomática da doença, o indivíduo pode desenvolver cardiopatias e manifestações digestivas, como problemas no esôfago e no intestino. Mas a cardiologista garante que apesar de a cardiopatia causada por Chagas ser muito temida pelo senso comum, ela pode ser tratada e, mesmo que não haja cura, a pessoa infectada pode ter qualidade de vida por muitos anos.
“Se a pessoa tem na família casos da doença de Chagas, se viveu em condições de risco no passado em áreas endêmicas da doença no Brasil, deve procurar fazer o exame”, recomenda Andréa Silvestre de Sousa.
O diagnóstico é feito por meio de exames de sangue específicos para as fases aguda e crônica. A médica explicou que apesar de a fase aguda ser muitas vezes assintomática, os profissionais de saúde e a população devem considerar o histórico epidemiológico para solicitar o exame.
“O Brasil avançou no controle da transmissão. Se a gente controla hoje, é porque sabemos que milhões de pessoas foram infectadas nas décadas passadas e hoje estão vivendo com a doença, muitas vezes sem saber. É preciso disponibilizar o diagnóstico através da busca ativa de casos de pessoas que têm uma história epidemiológica positiva, assim como parentes de pessoas que viveram nessas mesmas condições de vulnerabilidade social, condições inadequadas de moradia, filhos de mães com doença de Chagas, já que existe também uma transmissão congênita. Enfim, é preciso buscar esses casos”, disse Andréa.
Além disso, a médica destaca a importância de os profissionais de saúde serem amplamente orientados. “Também é preciso ter um grau de suspeição diagnóstica entre os próprios médicos, porque as vezes eles estão diante de uma cardiopatia e se esquecem da Chagas como uma possível etiologia base e que demanda intervenções mais específicas”, disse.