Nos Estados Unidos, o texto da americana Katori Hall foi apedrejado. Quase nunca uma sociedade está preparada para arranhar seus ídolos - mesmo aqueles que essa mesma sociedade tenha assassinado. A visão de um Martin Luther King humanizado demais, com mau cheiro no pé, doido por um cigarro, um café e prestes a trair a mulher às vésperas do próprio assassinato intuído incomodou. No Brasil, o talento carismático do casal Lázaro Ramos e Tais Araújo faz de O Topo da Montanha um sucesso estrondoso. Foi uma ovação o que se viu na noite do Teatro Guararapes superlotado do último sábado.
Num teatro, admitamos, que recebe sempre as melhores produções do País, de ingressos quase sempre caros e frequentado, também quase sempre, por uma elite ainda branca, era notório o ar de militância de público. De turbantes e outros símbolos de afirmação identitária, representantes de movimentos populares e organizações ligadas à causa negra compareceram como se, mais que a um espetáculo, fossem a um rito de altivez. "Claro que eles são grandes atores, mas a temática é sim o grande apelo que dá importância a esse espetáculo", dizia, na enorme fila que fez com a peça atrasasse mais de meia hora para começar, a antropóloga Rita Vasconcelos, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco.
Com um cenário minimalista e arrojado - uma caixa cênica de metal articulado simulando o quarto de hotel onde Luther King passou a última noite da vida, Lázaro, também diretor da montagem, e Taís foram aplaudidos antes mesmo de abrir as falas. Ele, no papel do reverendo; Ela, como a camareira que, simbolizando sua última tentação, o faz rever sua humanidade num diálogo em que não faltam referências e conversas com o divino. É comovente a sinceridade com que se entregam a seus papeis.
A grandiosidade do Guararapes, com seus mais de dois mil lugares, no entanto, comprometia o intimismo necessário a um espetáculo que deve ser assistido aos pés do ouvido. Um dos grandes atores de sua geração, o Lázaro Ramos que começou a carreira no Recife dos anos 2000 com aquela montagem hipnótica de A Maquina, de João Falcão, parecia, contudo, não encontrar a melhor potência na parceria de palco com sua mulher, Taís Araújo, outra atriz de talento incomum na monocórdica TV brasileira.
Não é um texto fácil. Exige respirações, silêncios para que o não dito dê sentido ao que é falado. Apressados, sem incorrer mais epidermicamente nas camadas de cinismo, sarcasmo e humor auto-impiedoso, os atores corriam demais, pareciam não se preocupar muito com os subtextos. Desfilavam como dois grandes cavalos de raça, elegantes, potentes, mais concentrados, contudo, na marcha que nas sutilezas do trote. Nos poucos e intensos momentos solos, traziam mais luz à cena que quando contracenavam. A dicção excessivamente carioca da atriz não nos deixava esquecer os modos e gestos pesadamente talhados pela TV na qual se destaca como uma das melhores profissionais. O sotaque do Leblon não parecia a melhor moldura vocal para aquela mulher simples diante do mito encarnado em seu primeiro dia de camareira.
O Topo da Montanha estreou em 2015; é ainda um espetáculo pulsante, em construção e no caminho do encontro de sua melhor dicção. Desnecessário, mas não custa repetir: os atores foram calorosa e militantemente ovacionados ao final da apresentação. Estavam tão emocionados como público.