Num dos pequenos corredores expositórios da galeria, uma reprodução do clássico de Hieronymus Bosch faz companhia a uma escultura de madeira. No quadro Cristo no Limbo, o pintor renascentista belga tencionava a culpa agonizante de uma Idade Média que ainda não conhecia plenamente a razão, assombrada pelos castigos permanentes anunciados pela igreja. Na escultura de quase dois metros do alagoano Petrônio, um dos artistas da comunidade simples da Ilha do Ferro, uma figura surreal, meio peixe, meio mulher, agoniza num grito. Batizada de “Mulher-piranha” por seu criador, a figura de dentes demoníacos parece ter saído diretamente do quadro renascentista, pintado cinco séculos atrás. Uma obra não foi inspirada na outra. Mas a presença delas, lado a lado, na mostra Liramartes, não é aleatória.
Quem for a exposição Liramartes, a mostra que inaugura (amanhã, para convidados, na terça, para o público em geral) a galeria RioMar, vai perceber o diálogo estabelecido pela visão curatorial do arquiteto e colecionador Carlos Augusto Lira em parceria com a antropóloga Ciema Melo e Silva. O recorte narrativo dessa mostra reforça o diálogo nem sempre voluntário entre temáticas da grande arte - ou seja, aquela reconhecida pelas instituições e historiografia-, e a chamada arte popular - ou seja, aquela elaborada com mais intuição que conceito por autores nem sempre fluentes do mundo letrado.
No mundo pós-colonial, Carlos Augusto Lira faz questão de endossar que já não faz sentido algum reforçar antigas barreiras classificatórias mais sociológicas que estéticas. “Eu acho que não cabe mais essa coisa de distinguir arte popular de arte eudita. Tudo é arte, apenas”, diz ele, com a autoridade de quem é um dos maiores (se não o maior) colecionador da arte tradicional brasileira e um dos maiores arquitetos do País que, já nos anos 1970, quando começou a trabalhar com o casal Acácio Gil Borsoi e Janete Costa, ensinava parte da elite brasileira a tratar, nos seus projetos de ambientação, uma peça da cestaria brasileira com a mesma dignidade dispensada a um Murano.
Extrato da Coleção Carlos Augusto Lira que já foi exposta no Museu do Estado, Liramartes é um novo recorte sobre esse conjunto que, sem favor, é um dos mais importantes do País. “É a coleção privada de arte tradicional brasileira mais importante do País. Uma coleção importantíssima, aliás, porque permite acompanhar todas as fases de um mesmo artista”, reforça Ciema.
Além de incorrer pelo percurso narrativo de cerca de 300 peças da coleção de mais de dez mil objetos em permanente reacomodação, o público vai perceber, no projeto expositório, como, de fato, a gente mais simples do povo brasileiro partilha das mesmas questões criativas de gênios do Ocidente como Dalí ou Miró. “É mesmo impressionante como há esse grande diálogo entre obras, mesmo que um artista jamais tenha ouvido falar desses que são considerados os grandes ícones”, comenta Carlos Augusto.
A exposição, aliás, é a culminânia do esforço iniciado há quatro anos por Ciema e Carlos Augusto de catalogar a coleção no livro A Lírica de Carlos Augusto. Com design primoroso de Gisela Abad, fotos de Emiliano Dantas e Dudu Schneider, as cerca de 300 páginas em choucê (à venda por R$ 170) não apenas exibem, mas apontam sentidos para as obras ali reunidas. Registram, inclusive, momentos íntimos de Carlos Augusto com a coleção, como o ritio anual de fé que faz em torno do acervo de santos e anjos por ele batizado de A procissão dos santos tristes. Mas, sobretudo, confirmam a relevância de Carlos Augusto Lira para a arte brasileira. Como um etnógrafo bissexto, ao selecionar e montar repertório, um grande colecionador tem o papel de imprimir os sentidos nem sempre óbvios à criação artística de seu País.