Uns com mais, outros com menos anos, Brennand, Tereza, Raul, Marianne, Zé Cláudio, Câmara, Montez e Reynaldo são alguns dos principais artistas, pernambucanos ou aqui radicados, com algo em comum além das tintas. Em plena atividade, eles não apenas viram como ajudaram a arte a se tornar moderna no recente século 20. Na série publicada pelo JC a partir de hoje, suas trajetórias e projetos futuros diluem uma verdade que não se sustenta: a de que o Modernismo no Brasil pode ser explicado apenas pela semana paulistana de 1922.
Bem-vindo ao Pernambuco Modernista – um entre tantos.
Francisco, Tereza, João, Zé Cláudio, Marianne, Guita, Badida, Raul, Montez, Reynaldo. Alguns com quase 90 anos de idade. Indomavelmente produtivos, criadores de narrativas visuais arrojadas, eles integram a última grande geração do modernismo pernambucano – uma estética sem prazo de validade, matricial e, paradoxalmente, ainda não amplamente reconhecida. “Já passou da hora de se recontar a história do Modernismo no Brasil”, dispara o crítico de arte Marcus Lontra, um dos mais contundentes do País, curador da mostra carioca Como Vai Você, Geração 80?, espécie de reedição da Semana de 22 na década de 1980 que redefiniria os caminhos da arte brasileira a partir dali. “Não se trata de substituir uma leitura por outra, mas que se possa atribuir a um Cícero Dias, aos Rêgo Monteiro, etc., a devida importância. O Modernismo Pernambucano tem uma especificidade, é um fenômeno que não teve ainda a ressonância nacional que merece”, diz Lontra, criador do recifense Museu de Arte Metropolitana Aluísio Magalhães (Mamam).
CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA
As trajetórias e planos de alguns dos gênios que fizeram a arte ser moderna no recente século passado diluem uma quase verdade. No percurso de cada um desses artistas em comunhão com suas maturidades, percebe-se que não houve um, mas vários modernismos. Não apenas aquele centrado no discurso da Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922. Lontra lembra que, em relação às artes, repete-se o que acontece com outras narrativas oficiais tecidas por aqueles com capacidade de construir bom-senso e hegemonia na sociedade: “A história é sempre escrita pelos vencedores. Pelas mesmas razões pelas quais Frei Caneca não é considerado um herói nacional, o Modernismo Pernambucano ficou preso em suas fronteiras físicas. Não se trata de discutir ou menosprezar a extraordinária contribuição do Modernismo Paulista que, com a criação de uma universidade como a USP, soube criar, através de trabalhos acadêmicos, uma hegemonia modernista paulistana – aí, sim, de uma maneira discutível –, mas de reconhecer a extraordinária contribuição do Modernismo Pernambucano que, no ensino oficial, aparece quase que como um apêndice”.
Território por excelência do figurativismo, dono de prestígio progressivamente menor, sobretudo a partir dos anos 1950 com a onipresença quase ditatorial do geometrismo e do abstracionismo capitaneados por São Paulo e pelo Rio de Janeiro, a pintura pernambucana volta, não mais discretamente, a circular com a mesma desenvoltura das performances e da arte desconstruída das galerias e instituições contemporâneas. “Depois de vários anos ‘em baixa’, a presença da figura na pintura progressivamente resgata um lugar de destaque na arte contemporânea – inclusive em Pernambuco. Não mais, certamente, com as atribuições que possuía no passado, mas servindo a um tipo de sensibilidade talvez menos enamorada daquilo que é objeto da pintura. Um tipo de sensibilidade que pinta, apesar ou contra a história da pintura, querendo-a fazer ecoar um mundo confuso e incerto, onde não existe mais o conforto de um entorno protegido, nem tampouco a promessa de um mundo melhor do que o vivido”, reflete o pesquisador e curador pernambucano Moacir dos Anjos, da Fundação Joaquim Nabuco.
Como Moacir e Lontra, críticos e curadores como Agnaldo Farias, Denise Matar, Clarissa Diniz e Paulo Herkenhoff têm produzido, há pelo menos uma década, ensaios e exposições em que esse modernismo com sotaque específico é convidado a sair do fundo das caixas. Ainda em 2006, Herkenhoff assinou a exposição Pernambuco Moderno. Realizada no antigo Instituto Cultural Bandepe, mantido pelo extinto banco estadual, no Marco Zero, a mostra procurava evidenciar como Pernambuco foi moderno antes do Modernismo oficial. Depois, em 2012, Herkenhoff e a pernambucana Clarissa Diniz curaram a exposição Zona Tórrida – Certa pintura do Nordeste, em que o gigantesco painel Eu vi o mundo, ele começava no Recife, obra-prima do surrealismo erótico, mulato e sociológico de Cícero Dias, foi exposto na cidade – pela primeira vez desde sua aparição, em 1929.
“Há um movimento de revisão crítica que identifica a importância do Modernismo Pernambucano. Nós temos um trabalho constante de compreender e valorizar Pernambuco. Quando havia um hegemônico moderno com uma considerável valorização de determinados aspectos construtivos da arte brasileira, talvez a presença de Pernambuco pudesse ser menos relevante. Mas no momento em que hoje a arte é plural, e quando você quer e espera que o Brasil reflita todas as suas pluralidades culturais, a arte de Pernambuco é fundamental para se compor esse mosaico, que eu não chamaria de o modernismo brasileiro, mas de os vários modernismos do Brasil”, discorre, novamente, o carioca Lontra.
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Pernambuco teria, cronologicamente, conhecido a arte moderna antes da inauguração oficial do Modernismo no Brasil. “Recife divide com São Paulo a primazia de nossa modernidade artística, pois Vicente do Rêgo Monteiro realizaria uma exposição no Recife, com 43 desenhos, incluindo obra de Picasso, que foi apresentada, em seguida, no Rio de Janeiro e em São Paulo, antecipando-se dois anos à Semana de Arte Moderna que os escritores e artistas realizaram em 1922”, aponta o artista, professor e ensaísta Raul Córdula. “Este pioneirismo (da exposição da Escola de Paris no Recife de 1920) sugere que Vicente e seus irmãos pintores Joaquim e Fedora, Cícero Dias, como também a cidade do Recife como referência de arte conectada com o mundo, são tão modernistas quanto São Paulo, tão antenados com o mundo quanto Oswald e Mário de Andrade e a Pauliceia Desvairada”, segue o paraibano Córdula, radicado na Olinda dos muitos ateliês coletivos – vários deles celeiros da arte que ia se afirmando moderna no Brasil.