Versatilidade do uísque vem sendo mais explorada por consumidores

Recife é a primeira cidade brasileira em consumo de uísque. São 11,3 doses por pessoa/ano
Flávia de Gusmão
Publicado em 29/05/2016 às 11:19
Recife é a primeira cidade brasileira em consumo de uísque. São 11,3 doses por pessoa/ano Foto: Helia Scheppa/JC Imagem


Os escoceses não escondem a surpresa diante dos números: o Recife é a primeira cidade brasileira em consumo de uísque. São 11,3 doses por pessoa/ano, vindo São Paulo em segundo lugar com 3,5 doses per capita. A admiração se dá, especialmente, quando eles levam em consideração as condições climáticas: numa terra excepcionalmente úmida e quente, era de se esperar que as bebidas mais frescas, mais arrefecidas em teor alcoólico, fossem as preferidas.

As especulações e teorias se entrecruzam. A presença dos ingleses entre nós pode ter sido o primeiro passo para uma atração que não se diluiu com o tempo. Diferentemente de outras levas migratórias, que esperavam ter no Brasil uma qualidade de vida melhor do que aquela proporcionada por seus países de origem (fosse por questões econômicas, políticas ou religiosas), os britânicos vieram para o Recife com contrato de trabalho firmado.

Funcionários de empresas que se encarregariam de implantar água encanada, gás, bonde, telégrafo, eletricidade, ao que tudo indica, em seu convívio social sedimentaram também o hábito da dose diária da bebida destilada, à base de água, cereais (principalmente a cevada) e leveduras.

Quando o tempo de serviço acabou, 99% dos estrangeiros retornaram para a terra natal. Em 1914, a presença inglesa no Recife foi rareando, mas o uísque ascendeu como símbolo de sofisticação, status, pertencimento ao que vem de fora. Em meio a uma oligarquia criada tendo as moendas dos engenhos e usinas como pano de fundo, onde se produzia e se consumia outro destilado tão potente em graduação alcoólica quanto – a cachaça –, a resistência física, do paladar e do bolso se acomodaram rapidamente à novidade.

Até o início dos anos 1990, o uísque seguiu sendo a bebida símbolo do pernambucano, de gênero masculino, da alta classe média, que trazia garrafas do exterior ou as comprava por debaixo dos panos para escapar dos impostos pesados e da pouca variedade de oferta.

A abertura do mercado nacional aos importados trouxe, a reboque, o vinho, um concorrente que soube se insinuar com competência num mercado até então quase que exclusivamente dominado pelo scotch, bebido puro, on the rocks ou com água de coco. Às senhoras era permitida a transgressão de misturá-lo ao guaraná, para se tornar condizente ao paladar feminino, supostamente “mais delicado”.

Até a introdução da cultura do consumo do vinho, o uísque era usado de forma genérica: tanto servia como aperitivo como acompanhava a refeição integralmente. Comia-se tendo ao lado uma dose. Não raras vezes, a bebida resistia à sobremesa e seguia adiante, como digestivo.

A chegada do vinho, não como bebida de missa ou de Semana Santa, mas como símbolo de refinamento, também eurocêntrico, foi orquestrada de forma inteligente. Simultaneamente à chegada de centenas de rótulos dos países produtores, o mercado se viu inundado por informação. Livros, revistas palestras, workshops davam conta da vastidão do universo recém-introduzido, bem como ofereciam a chave para penetrá-lo e, em seguida, fazer-se membro de um nicho automaticamente impregnado de distinção.

Era época, também, da fetichização da gastronomia, os jornais aderiram à tendência criando, primeiramente, colunas e, depois, páginas e cadernos dedicados ao tema. O ato de cozinhar e comer ganhou notoriedade e – na segunda parte da estratégia da indústria vinícola – a noção das qualidades do vinho como ideais para acompanhar alimentos foi se consolidando.

Pouco a pouco, os restaurantes pernambucanos que sempre tinham sobre a mesa uma garrafa de black ou red viram-nas serem substituídas, lenta e progressivamente, por cabernet sauvignons, pinot noirs, carmenéres e merlots. Aquele público feminino que era visto com condescendência, lá atrás, pela estratégia de marketing do uísque, mostrou-se decisivo aí também. O vinho reconheceu o protagonismo das mulheres na hora de comandar o que beber durante um almoço ou jantar e tratou de não alijá-las do processo de catequização para os novos sabores, tendo como aliados fortíssimos os vinhos não-tranquilos, os chamados espumantes.

A “harmonização” veio como a carta curinga para a bebida à base de mosto de uvas fermentadas. Para cada característica surgida da integração de ingredientes numa receita, um tipo de vinho seria indicado. Considerando-se a enormidade do mondovino e as infinitas possibilidades de combinações culinárias, seria este um playground praticamente sem fronteiras.

A austeridade e tradicionalismo dos escoceses em relação ao produto que fabricam, em quantidade e qualidade como nenhum outro país do mundo, não jogou a favor. Provocado ou não por seus criadores, o tabu de que nada deveria ser misturado ao uísque, sob o risco de macular uma composição que podia levar dezenas de anos para ficar no ponto, chegou tão longe que havia até quem desejasse manter a água fora de questão, defendendo que a maneira certa de degustar uma dose seria à caubói. Isso nunca foi verdade: os experts garantem que um pouco de água adicionada ao uísque é favorável, inclusive, para ajudar a liberar os aromas encapsulados pelo álcool.

Outro paradigma que precisava ser quebrado – e havia motivos para isso – era de que a uniformidade do uísque tornava-o uma péssima escolha para acompanhar refeições. Nem uma coisa nem outra: nem o destilado é homogêneo no sabor, nem ele é contraindicado para seguir com o menu, da entrada à sobremesa. Ao compreender essas duas bases como estratégia de estímulo ao consumo – agregado ao fato de que sua potencial clientela precisava conhecer mais o produto através de degustações e palestras – as engrenagens da indústria do uísque começaram a se mover nessa direção. Embora a aceitação da bebida pelos brasileiros não seja, realmente, fator de preocupação, não se deve dormir sobre os louros conquistados.

PROPAGADORES

A pernambucana Paula Sampaio Limongi, jornalista por formação, enveredou no universo do uísque com o título de embaixadora – primeiramente trabalhando para a empresa Grant’s e, atualmente, vinculada à Chivas, que pertence ao grupo Pernod Ricard. Sua missão, como o título indica, é representar a marca em todos os cenários possíveis: seja diante da imprensa especializada ou daqueles que nunca tragaram uma dose sequer.

Em sua esfera de ação, estão as degustações, que sempre são organizadas em torno de uma pequena exposição audiovisual, na qual elas compartilha algumas informações sobre a história do uísque. Dados básicos que apenas arranham a superfície de um iceberg formado por um mix de cultura, condições meteorológicas, geográficas e topográficas relacionadas à Escócia, pátria reconhecida da bebida, embora os irlandeses também disputem a primazia.

As degustações e harmonizações têm a tarefa, também, de ajustar os tais paradigmas que congelam a bebida numa redoma intocável, de uso extremamente restrito. No meio de sua conversa, Paula divide algumas dicas pessoais: “Quando ofereço um jantar em casa, por exemplo, os convidados ficam encantados quando, depois da refeição, sirvo um Chivas 18 anos mantido no congelador e acompanhado por chocolate”, entrega. As misturas, garante ela, dependem muito dos hábitos locais: “Nos países asiáticos é bem comum vê-lo adicionado ao chá verde. Na Espanha, usam coca-cola para incrementar e, no Recife, a água de coco é preferência”, indica a embaixadora, pontuando que “nada é proibido”.

Como tudo na vida, existem combinações boas e más, e com o uísque não é diferente. Podemos fazê-las empiricamente, afinal, as cobaias seremos nós mesmos ou, no máximo, nossos compreensivos amigos. Mas, quando se quer eliminar margem de erro, consultar um profissional é fundamental.

Para começar, é importante saber detalhes sobre a composição aromática e gustativa do uísque com o qual a comida será harmonizada. E eis, aqui, mais um pré-conceito a ser demolido: uísque não é tudo igual, as diferenças proporcionadas pela fórmula elaborada pelo masterblender podem ser tão expressivas quanto as encontradas no vinho. E, sim, assim como a bebida de uvas fermentadas, o terroir (terreno de onde vieram seus insumos) são fundamentais na definição de suas características.

A Diageo, principal concorrente da Pernod Ricard, detentora da marca de uísque mais consumida no Brasil, a Johnnie Walker, tem investido forte na coquetelaria, como forma, também, de difundir o uso do escocês. Normalmente preterido em favor de outros destilados como o rum, o gim, a vodca e a tequila, o uísque já provou por A + B ter potencial para a mistura, haja vista ter originado alguns clássicos da coquetelaria. Caso do Whiskey Sour, feito com 60 ml da bebida, 30 ml de suco de limão, uma colher de chá de açúcar e a clara de um ovo (opcional). E do belo Manhattan: gelo, duas partes de uísque, uma parte de vermute doce, uma a duas gotas de Angustura e casca de laranja.

Para estimular os bartenders a pensarem mais no uísque quando forem criar seus coquetéis autorais, a Diageo, realizadora do evento anual World Class Competition – que seleciona profissionais de bar para dois dias de competição e treinamento – trouxe para sua versão 2016 uma aula com Arturo Savage, embaixador de Johnnie Walker na Venezuela.

Instalados numa bancada diante da qual estavam taças preenchidas com o líquido âmbar oriundo das diversas regiões escocesas, os “alunos” foram orientados por Arturo a sentirem suas distintas características organolépticas (que podem ser percebidas pelos sentidos). O uísque produzido nas Highlands são aromáticos e temperados, ardidos e herbáceos; Os de Islay, defumados, secos e salgados; aqueles das Lowlands são leves, suaves e doces e os originários de Campbeltown têm características iodadas, turfadas e encorpadas. Entender isso é meio caminho andado para chegar às combinações perfeitas.

No comando do evento World Class Competition, o pernambucano Nicola Pietroluongo, embaixador Johnnie Walker para o Brasil, cita o exemplo do desafio “Seasons”, uma das etapas a serem vencidas pelos bartenders em direção ao primeiro lugar no certame: “A tarefa era criar um drinque para o verão e outro para o inverno. Na estação mais fria, o uísque é imediatamente lembrando como destilado de preferência”, garante. “Num bom coquetel, o líquido não soma, ele é somado pelos outros ingredientes. Um bom destilado nunca deve ser ocultado por outros componentes”, ensina.

E para nós, pernambucanos, que não temos frio, o mixologista João Morandi, da Pernod Ricard, dá a dica: “Cítricos. Com tantas frutas incríveis no Nordeste, fica difícil não pensar nelas para misturar ao uísque”.

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